O que a exposição precoce à violência provoca nas crianças e nos adolescentes, ainda mais quando até o ambiente escolar é atingido.
Por que ele matou aquelas crianças? Isso pode acontecer comigo? Na minha escola? Meus amigos podem morrer assim? Alguém pode entrar no trabalho dos meus pais? Nas próximas semanas, serão muitas as perguntas feitas por meninas e meninos brasileiros sobre o massacre na Escola Municipal Tasso da Silveira, em Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro. É o último episódio de violência a assustar uma geração que, infelizmente, convive com o medo por ela produzido cada vez mais cedo. E do qual dificilmente consegue ficar distante, bombardeada que é pelas notícias nas tevês, jornais, internet. “Vivemos uma crise de medo”, admite a psicopedagoga Maria Irene Maluf. “E as crianças e adolescentes estão expostos a uma quantidade inédita de estímulos a esses temores”, explica.
Nunca, porém, as crianças brasileiras haviam visto uma escola ser atingida por tamanha violência. Até hoje, pelo menos no Brasil, escolas eram ambientes mais protegidos, quase imaculados, embora nas ruas a sensação de insegurança seja crescente e muitos pais prefiram criar seus filhos de forma mais protegida. De repente, de maneira brutal, elas viram mais esse mundo ser invadido pelo terror, que pode marcar esta geração. “Ameaçar a escola é como invadir a nossa casa – onde esperamos estar protegidos”, diz Guilherme Polanckzycm, professor de psiquiatria da infância e adolescência da Universidade de São Paulo. “Quando alguém entra nela, fica a sensação de que ‘daqui a pouco não terá mais lugar seguro no mundo’.”
Por isso mesmo, a indagação que se faz, hoje, é como cada uma delas vai reagir e quais podem ser as sequelas. São conhecidas algumas respostas, manifestadas em episódios anteriores, ocorridos em circunstâncias diferentes. Logo após os atentados contra as Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001, por exemplo, foram registrados nos Estados Unidos, principalmente, mas também pelo mundo afora, relatos de pesadelos, medo de sair às ruas e desenhos nos quais os pequenos expressavam seus temores.
O que se sabe é que não há uma única resposta que atenda todas as crianças. Vários fatores vão determinar a reação de cada criança. Eles variam de acordo com sua estrutura emocional, o ambiente no qual vivem, o apoio que recebem e também a faixa etária. “A partir dos 5 anos elas já entendem o que está acontecendo e o impacto pode ser muito grande, não apenas desencadeando transtorno do estresse pós-traumático como também distúrbios maiores, como fobias”, alerta Polanckzycm, da USP. Quando isso ocorre, o cuidado pode exigir a realização de psicoterapia ou, em casos mais graves, o uso de medicamentos.
O peso da violência para a saúde mental das crianças está relacionado ainda com um aspecto chamado resiliência, que é a capacidade que uma pessoa tem de reestruturar sua vida após um impacto adverso de qualquer natureza. Desse modo, a forma como tragédias como a da escola carioca irá afetar as crianças está relacionada com a vivência delas na família e no meio social em que estão inseridas. As mais pobres, obrigadas a conviver entre traficantes e outras ameaças, aprendem desde cedo a lidar com essa realidade. E as que vivem isso de forma muito rara, em um ambiente superprotegido, com carros blindados, correm outro tipo de risco no seu desenvolvimento, que é o de não aprender a reagir às situações de perigo iminente. “Elas não sabem como agir e ficam paralisadas”, explica a neuropsicóloga infantil Ana Olmos.
No oceano de incertezas criadas a partir de uma situação extrema como essa, como é que pais e educadores podem responder às perguntas cada vez mais complexas e incisivas feitas por crianças e adolescentes? Os especialistas ouvidos por ISTOÉ foram unânimes ao afirmar que respeitar e responder honestamente às questões colocadas pelos filhos e alunos é pré-condição para qualquer família ou escola que queira lidar de maneira saudável com os traumas que nascem de tragédias como a de Realengo. A lógica é a de que, se a criança pergunta alguma coisa aos pais ou aos professores e não obtém uma resposta, ela buscará outras fontes, nem sempre confiáveis, que saciem suas dúvidas e angústias. O estrago, nesse caso, pode ser ainda maior. Os paulistanos Anelir Senna Naback, 47 anos, e Bruno Vieira Naback, 50, sabem disso. As duas filhas do casal, Dominique, 10 anos, e Larissa, 13, ouviram a notícia do massacre no Rio quando estavam no carro, junto com a mãe, e logo começaram a questioná-la. Ao chegar em casa, precavida, Anelir fez questão de assistir aos telejornais acompanhada das crianças e do marido. “Não quis esconder nada”, disse. “Prefiro conversar e esclarecer as coisas antes que elas recebam informações incorretas.”
Para atenuar o medo que surge e se soma ao crescente emaranhado de preocupações que já fazem parte do cotidiano de crianças que vivem em grandes centros urbanos, sugere-se começar explicando a natureza excepcional da matança de Realengo. “Frisar que essa é uma situação inédita, que nunca havia acontecido no País e que não é uma coisa normal é muito importante”, explica Sandra Amorim, representante do Conselho Federal de Psicologia. Discutir o absurdo da situação ajuda a desassociar a violência do local em que ele aconteceu, a escola, ambiente que a criança e o adolescente precisarão frequentar até a conclusão do ensino médio.
Citar, repetidamente, que episódios como esse são raríssimos funciona com crianças com menos de 10 anos, que, diga-se, são impossíveis de isolar quando uma tragédia dessa magnitude acontece. “Temos a ilusão de que podemos blindar os mais novos dessas notícias”, diz Maria Irene. Não podemos. “Diariamente vemos histórias de tiroteios em bancos, bares, shopping centers”, lembra a psicopedagoga Neide Noffes, da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).
Com quem tem mais de seis e menos de dez anos, a atenção precisa ser redobrada. Nessa idade o medo criado por situações como essa pode ser difícil de elaborar, já que elas compreendem a gravidade da situação, mas ainda dependem quase exclusivamente dos pais para se sentir seguras. Diferentemente dos adultos, crianças nessa faixa etária não têm um histórico de experiências de conquista sobre situações amedrontadoras para lhes dar confiança. De novo, respeitar e responder às perguntas dos pequenos, garantindo apoio constante de um adulto e respeitando os limites do bom senso na hora de dar detalhes, é o caminho aconselhável. As crianças também precisam estar seguras de que existe alguém que cuida delas e as ama. “Se isso for bem internalizado, ajuda a superar uma situação como essa”, diz a psicóloga especializada em estresse pós-traumático Luciana Mazorra.
Luciana Senatore, 36 anos, mãe de Bruna, 7, sabe que, em breve, a filha, atenta e questionadora, descobrirá o caso e virá com perguntas. “Quando houve o caso Isabela Nardoni, assassinada pelo pai e pela madrasta, ela tinha uma amiga que se chamava Isabela e ficava me perguntando se era ela a menina de quem estavam falando na tevê”, conta Luciana. “Expliquei que não. Mas disse, por exemplo, que Isabela Nardoni caiu da janela, não que havia sido jogada”, diz. “Procuro falar o que aconteceu, mas de forma menos dura.”
Para evitar distúrbios mais graves, a melhor receita é o trabalho conjunto em casa e no colégio. Nas escolas no entorno do local do massacre, por exemplo, o esforço para minimizar o impacto gigantesco de uma brutalidade como a que ocorreu já é intenso. Uma equipe de seis profissionais composta por assistentes sociais e psicólogos foi escalada pela Secretaria de Estado da Educação do Rio de Janeiro para visitar 12 colégios na redondeza de Realengo, ouvindo pais, alunos, professores e diretores. “Esses profissionais vão produzir um relatório sobre o estado dos envolvidos para que possamos socorrer essas pessoas no plano emocional”, explica Luiz Carlos Becker, subsecretário de gestão de pessoas da Secretaria de Educação. A Santa Casa do Rio de Janeiro também colocou o Grupo de Psiquiatria Infantil à disposição do governo para atender meninos e meninas da Tasso da Silveira.
Será um trabalho de longo prazo. As crianças que foram expostas diretamente ao assassinato em massa têm mais chance de desenvolver ansiedade exacerbada, pesadelos, dificuldade de concentração e depressão. “Podemos fazer a analogia com uma árvore: se você faz um corte no caule em crescimento, o impacto é muito maior do que se você fizer o mesmo talho em uma árvore adulta”, explica Leonardo Fontenelle, professor de psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Assim como a árvore, o cérebro é mais vulnerável quando está em desenvolvimento. Em uma mente adulta, um evento traumático não tem repercussões tão globais quanto em um cérebro jovem.”
Esforços como o da Secretaria da Educação e o da Santa Casa não devem se restringir ao entorno do colégio ou à cidade do Rio de Janeiro. O trauma de uma violência desse tipo tem amplitude nacional e internacional. Em São Paulo, por exemplo, a psicopedagoga Birgit Möbus, da Escola Suíço-Brasileira, tem convidado os alunos a externar o que sentem diante dessa tragédia por meio de desenhos. Trata-se de uma maneira eficiente na hora de avaliar o quão machucados e tristes estão os estudantes. “Pedir para que eles escrevam uma carta de solidariedade para os familiares das vítimas também serve para confortar”, diz ela. No Colégio Marista São José, no Rio, o assunto será trabalhado com os alunos e entre os professores. “É importante usar um episódio como esse para explicar em sala de aula conceitos como respeito, afetividade e alteridade, que é a capacidade de se colocar no lugar do outro e entendê-lo”, diz Edson Leite, vice-diretor educacional.
É uma forma de amenizar o medo criado pela notícia, que, se é imenso nos adultos, pode ganhar dimensões gigantescas nas crianças, já que muitas têm dificuldade de diferenciar o real do imaginário. “A criança tem o componente fantástico muito forte”, lembra Fábio Barbirato, chefe de psiquiatria da Santa Casa do Rio de Janeiro. O médico conta que, nos tempos do caso Isabela Nardoni, ele chegou a atender crianças que desenvolveram fobia de que os pais, sem histórico de violência, as lançassem da janela de casa. “Não é fácil ser pai hoje”, resume Maria Irene. “O volume de coisas para explicar e de perguntas para responder é cada vez maior”, diz. Absurdos inexplicáveis como o massacre de Realengo pioram essa tarefa.
Fonte: Revista ISTO É
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