A chacina que matou 12 estudantes e feriu outros 12 em uma escola carioca atinge toda a sociedade e pode deixar a marca do medo em uma geração
Quem esquecerá as imagens tremidas, feitas com celular, de crianças em transe, uniformes empapados de sangue, cruzando em fuga desesperada o portão da escola, numa corrida dramática pela sobrevivência? Como deixar de ouvir seus gritos de absoluto terror enquanto vagavam atônitas pelas ruas em que antes se sentiam seguras? Apagaremos um dia de nossas vidas o silencioso filme captado pelas estáticas câmeras de segurança da Escola Municipal Tasso da Silveira, que primeiro apresenta um jovem tranquilo caminhando pelo corredor, depois revela um frio caçador carregando suas armas e, ao final, o pavor de meninas e meninos tentando escapar de sua mira? E as cenas que não foram vistas, mas construímos em nossas mentes a partir dos relatos minuciosos dos sobreviventes – crianças entre 12 e 14 anos com a alma manchada de medo e pânico que falavam com uma frieza apenas capaz aos que estão tomados pelo choque? E as expressões de horror nos rostos das mães, que viveram suas dores em público enquanto esperavam não ouvir o pior?
Nada indica que será possível, tão cedo, absorver todo o impacto do estarrecedor ataque realizado na quinta-feira 7 por Wellington Menezes de Oliveira, 23 anos, ao colégio que frequentou anos atrás. Com duas armas em punho, antes de se matar ele promoveu uma carnificina que resultou na morte de 12 alunos, feriu outros 12 e impactou todo o País. Pela primeira vez assistíamos à tamanha barbárie em uma escola brasileira – há um extenso e trágico histórico de episódios como esse em outros países. E, a partir de agora, viveremos marcados pelo medo, pois não temos como nos assegurar de que será a última.
Wellington planejou cada detalhe de sua ação. Não podia prever o clima, mas calhou de ser um dia ensolarado, sem uma nuvem no céu. Véspera de uma data especial para os cerca de 400 crianças e adolescentes que estudam de manhã na escola, localizada em Realengo, zona oeste do Rio de Janeiro, em um modesto prédio verde e amarelo de três andares, cercada por um muro branco de três metros de altura. Para celebrar os 40 anos da instituição, completados no dia seguinte, o diretor Luiz Marduk programara uma série de eventos, entre os quais o projeto “Motivação para o sucesso”. Ex-alunos do colégio fariam palestras para os atuais, contando sua história pessoal. Às 7h15, com suas mochilas a tiracolo, os estudantes foram para as salas, fazendo a algazarrra de sempre. Bem-vestido, de calça preta e camisa verde, Wellington chegou ao colégio por volta das 8 horas e não teve dificuldade para atravessar o portão de ferro que, se não fossem as festividades, estaria trancado com cadeado. Quando entrou na sala de leitura, a primeira à esquerda da escada, uma de suas ex-professoras, Dorotéia, o reconheceu. Ele tentou falar com ela, mas a docente estava ocupada e pediu que ele esperasse um pouco. Dez minutos, foi o tempo que Wellington aguardou. Depois, partiu em direção à execução de seu plano macabro: havia escolhido a escola para matar e morrer. Entrou na classe 1803 e, diante da reação de espanto da professora de português, disse que faria uma palestra. Caminhou até o centro da sala, botou a mochila numa das carteiras. Sacou um revólver. Apontou para a testa da aluna Géssica Guedes Pereira, de 14 anos, que estava na primeira fila. Apertou o gatilho. Foi o início do banho de sangue.
A cena se repetiu dezenas de vezes, numa metódica e macabra rotina. Wellington invadiu duas salas e selecionou suas vítimas, procurando alvejar principalmente as meninas. Ele havia se preparado para o ataque e sabia que não teria muito tempo para executar o maior número possível de crianças e adolescentes. Por isso, trazia um cinturão repleto de balas e usou speedloaders, dispositivos para recarregar as seis balas de seus dois revólveres (um de calibre 38 e outro, de 32) de uma só vez. E procurou ser letal, disparando sobretudo na cabeça e no peito de suas vítimas. Como ex-aluno da escola e morador da região, sabia das deficiências no policiamento das redondezas e podia imaginar que a polícia demoraria algum tempo para chegar ao local. Uma operação de combate ao transporte clandestino, com o apoio da Polícia Militar, foi a salvação de muitas vidas.
Tayara de Oliveira, 14 anos, estava na primeira sala atacada pelo atirador, mas conseguiu escapar ilesa. Mesmo aterrorizada, em vez de correr para casa, no mesmo bairro, foi atrás de ajuda. Abraçou o colega Alan Mendes, 13 anos, ferido no rosto, na clavícula e na mão, e andou até o ponto onde os policiais foram avisados. O menino foi imediatamente levado para o hospital. Enquanto isso, na escola, Wellington fazia mais vítimas. Parecia ter treinado para aquele momento, pois descarregava e carregava os revólveres com destreza. Os dramáticos relatos dos sobreviventes descrevem um homem que julgava ser Deus. O jovem Riccele Ponce, 15 anos, conta que o ouvia, entre os gritos, decretar o destino de cada criança: “Ele dizia: ‘Você vai morrer’. E depois atirava. Os alunos pediam ‘pelo amor de Deus’ para não morrerem”. Depois olhava em outra direção e apontava: “Você, não!” O mais chocante é que Wellington executava seu plano sorrindo muito. Depois de descarregar sua munição na classe 1803, o assassino foi para a sala em frente, a 1801, recomeçar a matança. Mateus Moraes, 13 anos, estava lá. Como “não enxerga bem”, o garoto costuma sentar-se perto da lousa. Assim que os primeiros disparos foram ouvidos na escola, seus colegas correram para o fundo da sala e se agacharam. Mateus continuou de pé, orando. Religioso, clamava a Deus para não morrer e implorou, também, para que o atirador não tirasse sua vida. “Ele fez um gesto com a mão, pedindo que eu saísse da frente dele para atirar nos outros”, contou o menino, que passou a tarde chorando. “Então me disse, ‘não vou te matar não, gordinho’.” Stephany da Silva, 14 anos, teve a arma apontada para a sua cabeça, mas no lugar do disparo simplesmente ouviu “hoje não é seu dia de morrer”. Em sua roleta-russa mental, o monstro do Realengo desviou a pistola e atirou na cabeça de outra garota ao lado dela.
Banalizada nas ruas, a violência não chega a ser novidade na vida de muitos que tiveram seus destinos cruzados ao de Wellington. Renata Rocha, 13 anos, já a viveu dentro de casa. Seu pai, o pedreiro Nilson Rocha, 56 anos, parecia reviver um filme. “É a segunda vez que passo por essa situação”, lamentou ele. Há dois anos, outro de seus filhos foi atingido por uma bala perdida dentro de casa. Com Renata, foi diferente. Não foi atingida por um projétil disparado a esmo. Na Escola Tasso da Silveira, as balas tinham alvo definido. Safou-se quem foi poupado pelo assassino ou conseguiu livrar-se de sua loucura. “No momento em que ele foi recarregar a arma, a Renata saiu correndo, mas levou um tiro pelas costas, que saiu pela barriga. Mesmo assim, se levantou e continuou a correr”, emociona-se Rocha. Renata sobreviveu. A colega Thayane Machado Monteiro, 13 anos, também foi baleada no braço, na clavícula e na barriga – alguns estilhaços se instalaram na coluna cervical. “Minha filha praticava atletismo, era cheia de saúde”, contava a mãe, Andréia Tavares, à frente do hospital. Thayane corre o risco de ficar paraplégica.
A profusão de tiros chamou a atenção da vizinhança. O carteiro Hercilei Antunes, 44 anos, arrumava-se para o trabalho quando ouviu os disparos – e, logo em seguida, os gritos de socorro da esposa, Gildete. Eram 8h10. Ele saiu do banheiro correndo e deparou-se com um grupo de crianças feridas entrando correndo em sua casa, bem em frente à escola. O uniforme delas, branco com uma faixa horizontal azul na altura do peito, estava tingido de sangue. Havia também respingos no chão da casa e uma mancha avermelhada no portão de entrada. “As crianças estavam desesperadas e só pediam para ligar para os pais”, contou Antunes, cuja filha de 11 anos estava na escola. O carteiro, então, saiu correndo para tentar resgatar a menina. “Queria entrar, mas estava receoso. Até que chegou a polícia”, conta. Sua filha se salvou.
No primeiro momento, apenas três policiais militares, liderados pelo sargento Márcio Alves, 38 anos (18 deles como PM), do Batalhão de Polícia Rodoviária do Estado, saíram ao encalço do atirador. Eles participavam da operação de combate ao transporte clandestino quando foram abordados por Tayara e Alan. Armado com um fuzil, o sargento Alves entrou na escola e surpreendeu Wellington saindo de uma sala. O assassino ameaçou atirar, mas Alves foi mais rápido e disparou duas vezes. Um dos tiros atravessou a barriga do criminoso, que, mesmo ferido, tentou subir para o segundo andar. Acabou tombando na escada. Ato contínuo, se matou. A atuação do sargento Alves foi considerada fundamental. “Se não fosse ele, a tragédia teria sido pior, porque o assassino tinha muita munição”, disse o governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que classificou Alves, casado e pai de dois filhos, de herói. “Ele é um herói”, repetiu a pequena Jade de Araújo, 12 anos, autora de um dos mais impressionantes relatos da trajetória mortal de Wellington pela escola. “Ele dava tiro nos pés das crianças. Mandava virar para a parede e dava tiro. Ele atirava na cabeça. Só olhava para a frente e seguia.” Jade conseguiu subir um lance de escadas em meio a sangue e caos e refugiou-se em uma sala, onde a professora trancou a porta e armou barricadas com as carteiras. Enquanto ouvia, do lado de fora, os gritos das vítimas de Wellington, a menina desenhou uma casa na palma da mão. “Era para me tranquilizar”, contou ela, que é de família budista.
A descrição de Jade é a mesma encontrada pelo carteiro Antunes quando entrou na escola: “Era horrível. Havia crianças baleadas nos corredores e nas salas de aula. Algumas foram mortas sentadas, outras, embaixo das carteiras.” Com o matador abatido, ele e outros pais avançaram. Aos poucos, os sobreviventes foram reencontrando os familiares. A maioria com residência nas proximidades. Todos desesperados. A dona de casa Luciana Gonçalves, 38 anos, estava em casa, na favela Nogueira de Sá, também em Realengo, quando soube do ataque. Pegou uma bicicleta e saiu pedalando com pressa em direção à escola. “Quase fui pega por um carro”, lembrou. Ao chegar ao colégio, a confusão ainda era muito grande. “Passei momentos horríveis achando que meu filho poderia estar morto”, contou ela, chorando muito abraçada ao menino – Rodrigo, 13 anos, já pediu para mudar de colégio.
“Ao sair para descobrir o que estava acontecendo, vi duas meninas feridas na rua e corri para o colégio”, disse o desempregado Leonardo de Andrade, 23 anos, morador de um prédio próximo da escola. Ele calcula ter tirado oito crianças do prédio no colo para colocá-las em ambulâncias e carros particulares que levavam feridos para hospitais. A picape que o aposentado Luis Alberto Coelho Barros usa para fazer carretos levou seis vítimas. “Acabaram as ambulâncias e ainda tinha muita criança jogada na calçada”, contou, já na porta do hospital Albert Schweitzer, em Realengo. “Eu fiz o que pude, tentei salvar a vida deles todos.” Os feridos foram encaminhados para cinco hospitais do Rio e de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. No Albert Schweitzer, 16 psicólogos foram designados pelo governo do Estado para prestar atendimento aos familiares. “Temos a obrigação de dar solidariedade e apoio às famílias dos meninos e meninas vítimas desse psicopata, desse animal”, disse o governador Cabral, durante visita à escola. Abatido e revoltado, ele estava acompanhado do prefeito da cidade, Eduardo Paes, que também repetiu a palavra “psicopata” várias vezes. “A escola é um lugar feito para construir sonhos e educar as crianças e foi transformada num inferno”, afirmou. Em Brasília, a presidente Dilma Rousseff chorou ao pedir um minuto de silêncio em uma cerimônia e decretar luto oficial por três dias pela morte dos “brasileirinhos que foram retirados tão cedo da vida”.
Foi o tenente-coronel Djalma Beltrame, comandante do batalhão da PM na área, quem achou a carta na qual o assassino dá instruções para seu enterro – uma prova de que o ataque foi premeditado. “Os que cuidarem de meu sepultamento deverão retirar toda a minha vestimenta, me banhar, me secar e me envolver totalmente despido em um lençol branco que está neste prédio, em uma bolsa que deixei na primeira sala do primeiro andar”, escreveu Wellington. A carta comprova, também, sua perturbação mental. “Pelo histórico de isolamento, pela carta que escreveu e pela ação que protagonizou, há grande possibilidade de o atirador ser um psicótico, um homem com algum distúrbio de personalidade. Pode ser um esquizofrênico, um depressivo com quadro delirante psicótico”, analisou o psiquiatra José Thomé, coordenador da Comissão Técnica de Intervenção em Catástrofes e Desastres da Associação Brasileira de Psiquiatria. Na opinião da psiquiatra Ana Beatriz Barbosa Silva, autora de livros sobre psicopatas e bullying, ele sofria de delírio crônico e estava fora da realidade há algum tempo. “Ele parece ter planejado e treinado tiro. Escreveu uma carta, cujas ideias estavam bem amarradas, e escolheu o dia certo, quando a escola completava 40 anos, e ex-alunos dariam palestras”, diz a psiquiatra, frisando que o delírio crônico é mais difícil de ser identificado porque a pessoa se isola.
Nas horas que seguiram o ataque, especulou-se de tudo para saber o que levaria um jovem pacato a cometer tamanha barbárie. A resposta está nos meandros da mente de Wellington. Em seu planejamento, ele deixou poucos rastros. Na casa em que vivia, em Sepetiba, também na zona oeste do Rio, destruiu quase tudo o que pudesse ajudar a polícia. Já se sabe que um dos revólveres usados pelo atirador era roubado. O outro não pôde ser rastreado porque sua numeração está raspada. Professores da escola já começaram a ser ouvidos. A professora Dorotéia, que conversou com Wellington na entrada do colégio, desabafou: “Se eu tivesse dado atenção (a ele), será que ele não teria atirado em todo mundo?” Nada indica que qualquer outra coisa, senão a morte, poderia deter a fúria assassina do ex-aluno.Fonte: Revista ISTO É
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