A dimensão da catástrofe que acometeu parte da população do estado do Rio de Janeiro, apesar de recorrente, surpreendeu. E não sem razão, ganhou a atenção do país, com direito a reportagens, declarações de autoridades, detalhamento de características geográficas e, infelizmente, alguns excessos.
Em meio aos esforços das equipes de resgate e atendimento de emergência, à mobilização solidária empreendida pela população fluminense, e aos novos planos de investimento organizados às pressas, por quem se absteve do compromisso de empreender políticas habitacionais sustentáveis, tenho assistido à banalização sistemática do diagnóstico de transtorno de estresse pós-traumático - TEPT. Declarações afoitas, oferecidas como se fosse possível explicar e resolver tudo a partir dessa conclusão. Nesse caso, invariavelmente equivocada.
Estudos indicam que um em cada quatro indivíduos submetidos a catástrofes desenvolvem TEPT nos meses e anos posteriores ao evento1. Porém, diagnosticar que uma pessoa sofra com o transtorno, durante o pronto atendimento ou nos abrigos improvisados, nos dias em que o desastre ainda está acontecendo, parece-me leviandade.
TEPT faz parte do grupo dos transtornos psiquiátricos predominante na população em geral2-3. E segundo a última revisão do Manual de Diagnóstico e Estatística de Transtornos Mentais - DSM-IV, classificam-se apenas cinco variações de Transtornos de Ansiedade: TEPT, transtorno obsessivo-compulsivo - TOC; transtorno de ansiedade generalizada - TAG, transtorno do pânico / fobia social - FS; e fobias específicas4.
Especificamente o TEPT, está relacionado à existência de um evento / trauma, de grande relevância na percepção subjetiva do paciente, e que no passado, o expôs a uma situação real de ameaça. E esse evento pode sim ser exemplificado, entre outros, por deslizamentos e enchentes como as que ocorreram no estado do Rio. Entretanto, a pessoa com TEPT, sofre através de persistentes visões em flashback da situação traumática que viveu; e pode apresentar insensibilidade e reação comportamental incompatível, em situações que não representam perigo real; meses e/ou anos após a ocorrência do trauma. Ou seja, uma pessoa que teve a infelicidade de vivenciar o desastre na serra fluminense, por exemplo, poderá, no futuro, relembrar a situação dramática que enfrentou e reagir emocionalmente durante um simples dia de chuva.
Ao analisar os pacientes que sofrem TEPT, é possível verificar que há correspondência entre as suas reações comportamentais e emocionais, e os estímulos externos que recebe. Ou seja: lugares, clima, contexto, pessoas. E nessa condição, conforme a semelhança que a percepção subjetiva do paciente interprete em uma situação, ela poderá desencadear a mesma reação, emocional e física, vivenciada no momento do trauma.
Como ser humano e profissional especialista em traumas causados pelo disruptivo, acredito que qualquer pessoa saudável tem o direito de se sentir emocionalmente desestabilizada, por determinado período, quando submetida às consequencias de uma catástrofe. Essa pessoa, que durante o evento extremo, viveu a experiência de perder familiares e/ou amigos, a própria casa e referências de vida, ficou exposta ao perigo de morte, fome e desabrigo, não deve ser diagnosticada como afligida em Saúde Mental. E acredito nisso porque não é sua percepção subjetiva da realidade que está afetada, mas sim, a própria realidade.
Faço parte de uma corrente de pensamento, que não se satisfaz em buscar exclusivamente na pessoa afetada pela catástrofe e exposta a tão desorientadora realidade, a desordem de ordem psíquica que possa ser qualificada como doença; nem tampouco em aguardar que esse estresse emocional, temporário, evolua para o real quadro de desajuste e adoecimento. Aí sim, poderá ser TEPT.
Se há consenso que a exposição de indivíduos saudáveis em eventos desorganizadores apresenta alto potencial de adoecimento físico e desequilíbrio emocional, parece-me sensato admitir que o diagnóstico TEPT, nessas circunstâncias, é ineficiente em propor tratamento e evitar que pessoas sãs desenvolvam transtornos de ansiedade. Por isso, partilho da proposta do Dr. Moty Benyakar5, ao admitir o diagnóstico diferencial de Transtorno por Disrupção, onde se incluem os quadros depressivos. E defendo o direcionamento: oferecer atendimento assistencial continuado às populações afetadas por catástrofes, durante os anos seguintes ao evento, com o objetivo de prevenir o desenvolvimento de adoecimento.
É simples e imprudente, usar o diagnostico precoce de TEPT em avaliações por escalas, que pontuam sintomas, sem considerar os fatores humanos envolvidos nos desastres.
Leia outros artigos no Blog do Dr. José Thomé.
José Toufic Thomé é psiquiatra e psicoterapeuta psicodinâmico; coordenador do Curso Intervenções em Situações Limite Desorganizadoras no Instituto Sedes Sapientiae-SP; preside a Unidade Brasileira da Rede Ibero-americana de Ecobioética / Cátedra UNESCO de Bioética; membro da Associação Mundial de Psiquiatria (WPA) - Secção de Psiquiatria dos Desastres; e delegado do Conselho Mundial de Psicoterapia (WCP) na Comissão de Saúde Mental do ECOSOC na Organização das Nações Unidas (ONU).
REFERÊNCIAS
1. Kessler RC, McGonagle KA, Zhao S, Nelson CB, Hughes M, Eshleman S, et al. Lifetime and 12-month prevalence of DSM-III-R psychiatric disorders in the United States: results from the National Comorbidity Survey. Arch Gen Psychiatry. 1994;51(1):8-19.
2. Kessler RC, Berglund P, Demler O, Jin R, Merikangas KR, Walters EE. Lifetime prevalence and age-of-onset distributions of DSM-IV disorders in the National Comorbidity Survey Replication. Arch Gen Psychiatry. 2005;62(6):593-602.
3. Kessler RC, Chiu WT, Demler O, Merikangas KR, Walters EE. Prevalence, severity, and comorbidity of 12-month DSM-IV disorders in the National Comorbidity Survey Replication. Arch Gen Psychiatry 2005;62(6):617-27.
4. American Psychiatric Association. Diagnostic and statistical manual of mental disorders - DSM-IV. 4 th ed. Washington, DC: APA; 1994.
5. Benyakar, M (2003) Lo Disruptivo: Amenazas individuales y colectivas, Buenos Aires, Editorial Biblos.
Benyakar Moty, M.D; Ph.D. (Buenos Aires) Presidente da ‘Rede Internacional de EcoBioética para Educação, Ciência e Tecnologia’. Representante da Unesco para EcoBioética. Presidente da Seção de Psiquiatria dos Desastres da Associação Mundial de Psiquiatria.
6. Thomé, JT (2009) Intervenções em Situações Limite Desorganizadoras, RJ, Editora ABP
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