quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Opinião: mobilidade urbana

É hora de o ciclista usar black-tie

Certa vez, a chegada de um dos convidados para um casamento em Londres provocou dois tipos de reação. A maioria das pessoas ficou feliz quando o viu encostar a bicicleta no meio-fio, defronte a igreja, pois ansiava ouvir as músicas que ele prometera tocar ao piano naquela tarde de primavera. Já para um pequeno grupo de brasileiros, o que mais chamou a atenção foi o meio de transporte que aquele homem bem vestido, de terno e gravata borboleta, escolhera para chegar a um evento social.

Por mais que a maioria dos brasileiros se mostre favorável à diversificação de soluções para melhorar a mobilidade, estamos ainda longe de hábitos que há tempos fazem parte da cultura de outros povos. Para dar um salto nesse sentido, é preciso ainda desfazer uma boa dose de preconceitos. Não é difícil encontrar o paulistano que acha chique transitar no metrô de Paris ou Nova York, mas nem pensa em usar o trem subterrâneo da cidade onde vive.

Antes que alguém se manifeste contra a comparação do quadro brasileiro com os sistemas de transporte dessas cidades, é preciso concordar que não é só por mera opção que a maioria dos brasileiros prefere os carros. A histórica falta de investimentos em equipamentos públicos com qualidade, acessibilidade e conforto e à altura do crescimento populacional nas regiões metropolitanas favorece, aos que podem, o transporte individual.

Sem mobilidade, a cidade perde focos econômico e cultural

Mas o quadro acabou por motivar também uma espécie de linha divisória invisível que separa classes no uso dos meios de transporte brasileiros. Os mais ricos só se locomovem de carro. Pobre usa ônibus. A melhor experiência de mistura de pessoas de diferentes faixas de poder aquisitivo aparece na restrita rede de metro das maiores cidades. Uma parte dos usuários do metro migrou do ônibus e outra deixou o carro na garagem. Nos horários de pico, ambas respiram aliviadas por transitarem em vias subterrâneas, por baixo da imobilidade na superfície.

Em 2012, foram despejados nas ruas e estradas brasileiras 200 mil automóveis novos mais do que no ano anterior. O licenciamento de 3,6 milhões de veículos, incluindo 168 mil caminhões e ônibus, fez do Brasil o quarto maior mercado mundial.

Não se pode culpar o cidadão por desejar ter um carro ou trocar o que já possui por um melhor, que lhe garanta o mínimo de conforto e isolamento nas longas jornadas do trânsito. Mas o antigo encanto por esse velho desejo de consumo tende a desaparecer. E os que conseguem agora ingressar no mercado dos zero-quilômetro, em busca de conforto e status, frustram-se com as novas experiências. Não são incomuns histórias de quem, em dias de trânsito pesado, chegou a gastar, sobre quatro rodas, o mesmo tempo que levaria em igual percurso a pé.

O problema já preocupa os fabricantes de veículos. Ao ser questionado sobre os desafios da indústria automobilística, em recente entrevista ao "The Wall Street Journal", Dan Akerson, presidente mundial da General Motors, foi objetivo: "Se você olhar para os carros de hoje, tirando o fato de serem maiores, mais seguros e mais potentes, eles ainda têm, na maioria, motores de combustão e quatro rodas. Isso tem que mudar. Não somos só uma indústria de carros. Somos uma indústria de transporte. As pessoas querem ter mobilidade; elas querem se mover de ponto A para o ponto B. Como fazer isso?"

Não é apenas a indústria de veículos que se aflige com o problema. Em longo trabalho recentemente apresentado ao governo federal, a Confederação Nacional da Indústria (CNI) mostra como a questão da mobilidade tem afetado o desenvolvimento do país ao "restringir o fluxo de pessoas, bens e ideias, resultando em menos produtividade, inovação e qualidade de vida".

A entidade mostra-se preocupada não apenas com o executivo, que não consegue chegar a tempo à reunião, como com o operário, que gasta horas no deslocamento até a fábrica, e, ainda, a mercadoria que fica parada nos congestionamentos.

Desde a década de 50, a fatia de brasileiros que passou a viver nos centros urbanos passou de 36% para 85%. O estudo da CNI lembra que 12 cidades metropolitanas alcançam 45% do Brasil urbano, enquanto apenas as duas maiores, São Paulo e Rio de Janeiro, somam 20% da população urbana brasileira.

"As cidades grandes, em geral as mais antigas, respondem por quase metade do Produto Interno Bruto. São as cidades grandes, em especial as metrópoles, o lugar privilegiado do intercâmbio econômico mundial, das maiores oportunidades ligadas ao conhecimento, à pesquisa e à inovação. A grande cidade se constitui como um agente indispensável da economia contemporânea e como um patrimônio altamente positivo", destaca o documento.

A mobilidade foi tema frequente nas últimas eleições municipais. E voltará ao debate toda a vez que o cidadão for às urnas. Cada cidade pode ter a própria discussão e solução.

Mas o governo federal não pode se furtar ao debate. Aliadas à necessidade de infraestrutura para a Copa do Mundo e Olimpíada, no caso do Rio do Janeiro, as obras do PAC podem ajudar a aliviar o sufoco urbano. Mas cabe também a interferência do governo federal para colocar o automóvel como uma das muitas peças que podem formar o mapa da mobilidade.

A iniciativa federal de reduzir o IPI dos automóveis, que agora começa a ser recomposto, pode ter ajudado a conter a retração nas vendas e consequências negativas na atividade das montadoras. Também tem seu mérito a custosa elaboração do Inovar-Auto, nova política industrial para o setor, que busca proteger a atividade no país e já ensaia meios de estimular o uso de carros mais econômicos e menos poluentes. Mas o esforço precisa ser direcionado a outros sistemas de transporte e à facilitação de conexões.

Se o olhar das administrações públicas começar a se voltar não mais apenas aos carros, mas a todos os modais, até o pedestre começará a caminhar com mais dignidade. Pode ser que isso também represente o fim do preconceito contra o encontro de classes no transporte público e ninguém mais estranhe quem pedalou para chegar até a festa.

Autor: Marli Olmos
(jornalista e repórter especial do jornal Valor Econômico)
Artigo publicado no jornal Valor Econômico.

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