segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Artigo - Terceiro Setor

A ameaça do terceiro setor

Não é de hoje que constatações de falcatruas entre governos e ONGs são colocadas perante a sociedade. E esse problema há muito já deveria estar sendo enfrentado de maneira mais rigorosa pelo poder público. Vertente do mais tradicional patrimonialismo brasileiro, a discussão reproduz uma conhecida forma de relação entre políticos, governos, empresas e organizações não governamentais, para um grotesco jogo de favores, demarcando lamentável característica deste país, desde a chegada dos portugueses. Mudam as formas de agir, mas permanecem os vícios de favorecimento aos agregados, atrelados a interesses inconfessáveis.

A crítica generalizada que estamos presenciando, se não é mal-intencionada, é, no mínimo, irresponsável — mesmo em países como o Brasil, em que o papel da sociedade civil organizada, embora tão antiga quanto o próprio Estado (as Santas Casas são organizações do terceiro setor criadas no século 16), ainda não é suficientemente entendido. Isso, apesar do flagrante crescimento dessa legítima opção de atuação, tanto no número de instituições (338.162, segundo o IBGE, em 2008) quanto na diversidade de campos de atuação, que são abertos, e nos resultados que apresentam.

De regra, cidadãos comumente chamados de empreendedores sociais, lideram e participam da execução de ações permeadas de forte sentimento de interesse público, perseverança e inovação. Embora pesquisa realizada pelo IBGE/Ibope em 2010 demonstre que as ONGs atingem 64% de confiabilidade na população brasileira, elas ainda são pouco valorizadas pela sociedade.

Esse grande esforço, que parte do conhecimento de assumir riscos de fazer diferente, de buscar resolver problemas a partir de um olhar deslocado, é que garante mérito sem precedentes aos muitos brasileiros que não se conformam com a condição medíocre com a qual são tratados nossos grandes dilemas sociais, muitos deles sem solução à vista e entremeados entre um poder público incapaz e uma iniciativa privada desinteressada.

Há estudos que demonstram que, em alguns países, há um crescimento proporcional maior de funcionários de ONGs do que em relação a governos e empresas. Também já é significativo o percentual do PIB nacional gerado pelas atividades do setor nesses países. Esse é um sinal inquestionável do sucesso de semelhante forma de realizar avanços. Para alguns, um fenômeno de tamanha influência é capaz de fazer algumas empresas de percepção mais aguçada a perseguir paulatinamente características de atuação de tais organizações para não perderem espaço para a concorrência.

As ONGs, como todas as demais formas de organização da sociedade, não são uma estrutura incólume. E as inconsistências observadas nos contratos públicos são uma demonstração da fragilidade nos controles atualmente disponíveis. O combate às ilicitudes é uma condicionante mais do que evidente, mas nada mais prejudicial do que o uso de ações espúrias para atingir, levianamente, todo o universo da sociedade civil organizada.

Interessante notar que é absolutamente incomum ouvirmos na imprensa que uma empresa privada foi enganada e teve recursos usados de maneira indevida, a partir de uma parceria com uma ONG. Mais raro ainda, se alguma situação ilegal for identificada, que continue trabalhando com ela. No caso do poder público, há uma inadmissível recorrência de casos, o que denota uma condição de flexibilidade que não pode ser justificada em nenhuma hipótese.

Mesmo que situações assim não representem sequer uma ínfima parte no universo dessas organizações, se governos acreditam que atuar em conjunto com o terceiro setor é uma maneira de fortalecer suas ações, devem ter a obrigação de controlar adequadamente qualquer tipo de atividade, como de sorte deve ocorrer em contratos com o setor privado.

O que não se pode admitir é a existência de uma tentativa, orquestrada ou não, de desmoralização de enorme contingente de verdadeiros brasileiros que, como ninguém, lutam pela causa do bem comum e dedicam suas vidas para esse fim. O terceiro setor, independente, crítico e inovador, representa alicerce fundamental para uma evolução positiva da sociedade.

Como disse Flávio Arns, ex-senador e atual vice-governador do Paraná e secretário da Educação, "o povo brasileiro, antes de tudo, deveria agradecer às ONGs pelo papel relevante que têm assumido neste país".

Autor: Clóvis Borges.
(diretor-executivo da ONG curitibana Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental)
Publicado no jornal Correio Braziliense.

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