São 9h de sábado quando o tenente-coronel Silva Júnior aparece. Ele é o último hóspede a descer. Depois de 10 dias, esse é o primeiro café-da-manhã do militar no restaurante do Hotel Bel Air, na entrada de Teresópolis, onde está hospedado desde o dia seguinte às chuvas que assolaram a Região Serrana. Normalmente, a rotina o fazia acordar às 6h e comer um pão com manteiga na Granja Comary, onde foram montadas duas tendas no local transformado em base do Exército para chegada e saída das equipes de resgate.
Militares no café-da-manhã em um hotel em Teresópolis: movimento de turistas foi substituído pelo de trabalhadores que lutam para reconstruir a cidade.
Na maior parte da cidade que até agora contabilizou 319 mortos e ainda busca 211 desaparecidos, o clima ontem era de quase normalidade. Nas ruas da região central de Teresópolis, a chuva não fez estragos. E começam a ficar para trás as lembranças da tragédia. Restaurantes, hotéis e lojas abriram normalmente. Mas basta observar com atenção para estranhar o vazio da famosa feirinha de roupas, comidas e artesanato da cidade. Em fins de semana normais de alta temporada, ela estaria amontoada de gente entre as barracas, ávidas por levar da cidade alguma lembrança e aproveitar o preço das roupas de frio. Mas neste sábado não havia turistas e a feirinha começou a ser desmontada mais cedo, um pouco pela chuva que caiu rapidamente no fim da tarde, e muito pela falta de movimento.
Sem turistas, Teresópolis está longe de estar deserta. Há gente de todo o estado e vários cantos do país hospedados em seus hotéis e circulando pelas ruas. São turistas acidentais – pessoas mobilizadas pelo desastre das chuvas que estão no município para trabalhar em sua reconstrução. Ao invés de passar o dia batendo perna pela Feirarte, em caminhadas ecológicas no Parque Nacional da Serra dos Órgãos ou em visitas ao Lago Comary, esse tipo bem particular de visitante corre de um lado para o outro com sacos de supermercado na mão, descarrega caminhões que chegam sem parar com doações, conversa com moradores que perderam parentes e suas casas, organizam filas para a entrega de mantimentos, dão informações de como conseguir novos documentos, tentam restabelecer os serviços básicos e ajudam no que podem para trazer a cidade de volta ao seu curso normal.
Erberson veio de Roraima, por conta própria, para ajudar no ginásio Pedrão, em Teresópolis
É gente como o auxiliar de sonda Erbeson Costa Rocha, cearense morador de Roraima, e o advogado William Cunha Von-Held, de Cabo Frio, na Região dos Lagos fluminense. Erbeson pegou R$ 2 mil e 25 dos seus 45 dias de folga para doar às vítimas da enchente. Viajou de Salvador para o Rio de ônibus, enfrentando 1.649 quilômetros de estrada, para dormir abrigado em uma igreja. Passa o dia no ginásio Pedrão, que foi transformado em centro de recebimento de doações e é onde voluntários e funcionários da Defesa Civil, prefeitura e governo do Estado se reúnem para oferecer apoio psicológico e jurídico, distribuir roupas e mantimentos e ajudar na busca por desaparecidos. Erbeson foi sozinho para Teresópolis, cidade onde nunca esteve, arcando com todos os custos da viagem. Só vai embora em meados de fevereiro. “Em 2008, fui para Blumenau, quando aconteceu aquela catástrofe por conta das chuvas. Eu não consigo ver tanto sofrimento e não fazer nada, se eu posso ajudar. Não sou rico, mas tenho saúde e posso trabalhar. Estou aqui para ser útil e fazer o que for preciso”, explica o soldador, que ontem trabalhava dando baixa na saída de colchões e outros donativos distribuídos para os desabrigados e desalojados. “Tem caminhão de doação chegando meia-noite e precisa de alguém para descarregar. Dorme-se pouco por aqui, mas ninguém reclama”, garante.
Diferente de Erbeson, William não estava de folga. Funcionário da prefeitura de Cabo Frio, ele faz parte do grupo de 28 pessoas que se mudou temporariamente para Teresópolis para trabalhar com a Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos no auxílio às vítimas das chuvas. Ontem, passou parte do dia num galpão de bebidas que abriga quase 200 pessoas no bairro Meudon fazendo o cadastramento de famílias que vão receber o Aluguel Social. “É a primeira vez que fico tão perto de uma tragédia como esta. Ouvimos histórias muito tristes e vemos famílias e vidas destruídas. Estou aqui a serviço. Fazendo o meu trabalho eu posso contribuir para, de alguma forma, ajudar a diminuir esse sofrimento. Já me sinto útil“, afirma.
A rotina de William e seus colegas é a mesma desde que chegou em Teresópolis, no início da semana. “Acordamos por volta das 7h, tomamos café no hotel e nos reunimos para a distribuição das tarefas, de acordo com a demanda do dia. Voltamos lá pelas 21h, só mesmo para tomar banho, comer alguma coisa e dormir“. Os dias são longos e a carga emocional, pesada. “Já trabalhei no auxílio às famílias que buscam parentes, na distribuição de material, fiz cadastramento na zona rural e nos abrigos. Ontem atendi a um casal que procurava dois de seus quatro filhos. Já tinham encontrados dois corpos, mas outros dois continuavam desaparecidos. Eram todos crianças, a mais nova com um ano. Nessa hora a pressão é muito grande e não temos o que fazer, a não ser estar ali para aquela pessoa“, conta, com os olhos marejados, a assistente social Renata Rocha, também de Cabo Frio. Ela deve ficar pelo menos até terça-feira na Serra.
Histórias como as de Erbeson, William e Renata são comuns nestes dias nas ruas de Teresópolis. Mas não é só gente que vem de longe ajudar. Moradores da cidade não ignoram o sofrimento de seus conterrâneos e fazem o que podem. Qualquer gesto, por menor que seja, faz a diferença quando a tragédia humana deixa a todos sem palavras. Com jaleco branco e prendedores de cabelo no bolso, o designer de jóias Eduardo Gonçalves resolveu mudar a rotina e relembrar seus tempos de cabeleireiro nos anos 80: tirou as tesouras, pentes e a máquina da gaveta e passou o sábado num abrigo cortando cabelos, enquanto sua tia fazia as unhas das crianças. Até as 14h, Eduardo já tinha feito mais de 20 cortes. “Não podia ficar em casa como se fosse um fim de semana normal. O que vim fazer é uma coisa bem pequena, mas já é alguma coisa, né?”. A alegria dos meninos que pediam para ficar com cabelo de moicano era mais do que a resposta que Eduardo procurava num sábado longe de ser um sábado qualquer.
Fonte: Veja
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por acessar o Psicoterapia Brasil!
Sua opinião é importante, será muito bem recebida e esperamos poder contar com ela sempre!