terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Anônimos das ruas

Eles dormem nas calçadas, em prédios abandonados e terrenos baldios. Muitos perderam a referência de quem são e de onde vieram. Sem família, posses ou perspectivas, os moradores de rua são cada vez mais comuns. Boa parte está nessa situação devido ao abuso do álcool e das drogas, sem se importar com as condições desumanas a que são submetidos. Acima de tudo, os moradores de rua são o reflexo de uma Caxias desenvolvida economicamente, mas que não consegue resolver seus problemas

Caxias do Sul – Quando chegou a Caxias do Sul, há um ano, Vanderli Oliveira Ramos, 38 anos, não tinha pretensão de ficar. Bastou circular pela cidade para mudar de ideia. O problema é que Vanderli era um andarilho sem dinheiro, emprego ou amigos. Na falta de outra alternativa, foi morar sob uma marquise.

O homem é exemplo de um tipo cada vez mais comum na cidade: pessoas sem posses, desgarradas de suas famílias e que, por algum motivo, escolheram viver na rua. Quase todos são conhecidos pelo serviço de assistência do município. A presença deles, aos olhos da população, é um incômodo. Mas a Fundação de Assistência Social (FAS) vem tentando retirar essas pessoas da rua, sem sucesso. Um levantamento da FAS aponta 69 homens e 18 mulheres nessa condição. Desse grupo, pelo menos 50 têm moradia. Os números mostram um crescimento, pois, em 2007, um censo da Unesco em parceria com o governo federal identificou 58 pessoas em situação de rua em Caxias do Sul.

Vanderli, por exemplo, veio de Pantano Grande, no Vale do Rio Pardo e se uniu a outros sem-teto com histórias semelhantes. O grupo se vira com pedaços de papelão, lençóis e cobertores em uma área verde no bairro Lourdes.

O ponto é apenas um entre os inúmeros espalhados pela cidade. Chamados de mocós pelos próprios moradores, essas casas abandonadas e terrenos baldios se tornaram o endereço principal de pessoas vindas de várias cidades do Estado. Quem não tem a sorte de encontrar um abrigo parecido, improvisa a cama nas calçadas do Centro, na porta da Catedral e em praças.

Drogas e álcool – Muitos não têm documentos. Os pés marcados por feridas, a barba por fazer e as roupas velhas caracterizam os andarilhos, chamados de trecheiros pelos profissionais da rede de apoio. Uma parcela dessa gente está na rua por não ter condições de pagar aluguel ou estadia em uma pensão. Outros tiveram desentendimentos graves com familiares e optaram por viver só. O abuso de drogas e álcool também é motivo que os empurra para a rua. Chama a atenção a presença de pessoas com algum tipo de transtorno mental. Raros são aqueles que estão na rua simplesmente pela vontade de viver em liberdade, longe das regras da sociedade.

A maioria está desempregada e sobrevive de ganhos obtidos na economia informal. Vanderli, por exemplo, cuidava de carros na Avenida Júlio de Castilhos, em Lourdes, até ser expulso por policiais militares. Ele já esteve em Santa Catarina e no Paraná. Nas andanças, chegava a caminhar 25 quilômetros por dia. Com medo de atuar como flanelinha em Caxias, ele agora cata latinhas e papelão. No futuro, Vanderli se imagina ganhando a vida com a reciclagem.

– De repente, um dia, a gente (moradores de rua) se une e aluga um pavilhão para reciclar. Quando vê, estamos bem organizados e se dando bem – projeta Vanderli.

Se muitos sonham com comida ou trabalho, outros passam o dia tentando sustentar o vício em bebida ou drogas. André (nome fictício), 29, também é flanelinha. Gasta parte do que recebe em cachaça. A dependência do álcool foi o estopim que o fez sair de casa há seis meses.

– Ameacei minha mulher e agora tô na Lei Maria da Penha. Não posso mais me aproximar dela. Vim morar na rua para ajudar um amigo que está na mesma situação – conta.

André divide a área verde de Lourdes na companhia de Ricardo (nome fictício), 29, viciado em crack. Os pais de Ricardo moram no bairro Parque Oásis, mas ele prefere não ter um teto. Acredita que assim há mais chance de conseguir a droga.

– Uso o crack há 18 anos, perdi meus dois filhos na Justiça e não sei onde eles estão. Não tem nenhuma vantagem em dormir na rua, só a liberdade – alega Ricardo.

Os sem-teto sabem que não são bem-vindos, independentemente do lugar escolhido. Afirmam ser vítimas do preconceito e dizem que são temidos e confundidos com ladrões.

– É só assaltarem alguém aqui perto que a polícia aparece aqui nos barracos. Uma coisa é a gente estar na rua, a outra é ser bandido – reclama Vanderli.

Busca por tratamento – O albergue municipal é o termômetro do problema. Mensalmente, cerca de 200 pessoas, entre moradores de Caxias e migrantes, passam pela instituição. A assistente social do albergue, Vanda Ferreira Vittorazzi, percebe que muitos sem-teto vêm a Caxias em busca de emprego. Porém, o verdadeiro objetivo, quase sempre, é a procura por tratamento.

A questão é que se o serviço público não atende plenamente quem é da cidade, dificilmente tem como dar atenção aos migrantes. Por isso, a meta é identificar os dependentes químicos ou com transtorno mental e enviar de volta para suas cidades de origem.

Por outro lado, os profissionais do programa Proteção e Apoio Social (PAS), da FAS, tentam reabilitar essa população com o encaminhamento para trabalho. Apesar dos esforços, a maioria não consegue estabelecer uma rotina e retorna às ruas.

Alguns casos são graves e sem solução. Uma história impressionou os servidores do PAS e do albergue. Um homem aparentando cerca de 60 anos foi encontrado morando sob um viaduto na Rota do Sol, na região do bairro Jardim das Hortênsias. O homem vivia isolado naquele ponto há cerca de 20 anos. Apesar das condições precárias, sua presença raramente despertava a atenção de quem passava por ali. Depois de ser retirado daquele ponto, ficou constatado que ele sofria de demência sem causa definida.

– Ele fala de cidades de Minas Gerais, o que pode indicar sua passagem por lá – relata Vanda.

Para a maioria dos profissionais que atuam com esse público, a presença dos sem-teto está muito longe de ter uma solução. Embora pareça absurdo, qualquer pessoa tem o direito de morar na rua, desde que não prejudique ninguém. Inclusive, existe uma determinação do governo federal para que os serviços sociais reconheçam e auxiliem essa população.

– Todos nós podemos impedir que mais pessoas passem a viver na rua. Uma atitude é não dar esmolas. O adulto de hoje é a criança que nós sustentamos de forma errada no passado – opina a assistente social Lívia de Ávila Simas do Monte, integrante do PAS.



Fonte: Pioneiro

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