quarta-feira, 27 de maio de 2009

Psicoterapia para sobreviventes

Há quatro anos, o menino cha-mado aqui pelo nome fictício de Mohamed Abdul, de 13 anos, es-capou da guerra civil na Somália. Por muito tempo teve pesadelos e flashbacks das cenas terríveis que vivenciou. Aos 9 anos, foi pisoteado por uma multidão que fugia pelas ruas e ficou internado por duas semanas. Um mês após, presenciou as conseqüências aparentes de um massacre: 20 corpos boiavam no oceano. Pouco tempo depois, militares atiraram em sua perna, deixaram-no inconsciente e estupraram Halimo, sua melhor amiga, uma garota de sua idade. Durante sua recuperação no hospital, Mohamed sofria não só pela dor física, mas, principalmente, sentia-se devastado pelo medo e pela culpa de não ter conseguido ajudar a menina. Ele tinha acessos de fúria sem ser provocado e confundia pessoas que conhecia com os bandidos e ameaçava matá-las. Meses depois, deixou sua terra natal e foi para um assentamento de refugiados em Nakivale, em Uganda. Nessa época, afirmou: “Eu sentia duas personalidades dentro de mim. Uma era esperta, boa e normal; a outra, louca e violenta”.

Ele sofria de transtorno de stress pós-traumático, uma desordem caracterizada pelo medo e pela repetição de uma recordação intensa e vívida
do evento traumático. Felizmente, esse campo de refugiados contava com um recurso: o psicólogo Frank Neuner, da Universidade de Bielefeld, na Alemanha, estava oferecendo aos 14.400 africanos do acampamento, principalmente ruandeses, a “terapia da exposição narrativa”. Essa abordagem persuade os sobreviventes do trauma a assimilar as memórias à própria história de vida para que possam recuperar o equilíbrio emocional. Depois de quatro sessões, com duração de 60 a 90 minutos cada, os sonhos repetitivos e as recordações de Mohamed desapareceram; ainda se assustava com facilidade, mas não perdia o controle e os médicos o consideraram curado.

Historicamente, pesquisadores e trabalhadores de serviços humanitários de países em desenvolvimento negligenciaram a saúde mental, focando problemas como subnutrição, doenças e mortalidade infantil. Para o psiquiatra Atif Rahman, da Universidade de Liverpool, na Inglaterra, “o que mudou nos últimos dez anos é o entendimento de que o bem-estar físico não pode ser separado do mental”.

Experiências recentes com psicoterapia mostram que é possível melhorar a vida de sobreviventes de guerra, como o pequeno Mohamed, de mães paupérrimas com depressão pós-parto e de outras vítimas do stress causado pela pobreza. A chave para a viabilidade desses programas inclui o treinamento de cidadãos comuns para atuarem como conselheiros. Em alguns casos, o procedimento pode ser coadjuvante de outras terapias, mas há situações em que ajudam tanto que é possível dispensar o uso de psicotrópicos. Embora muitos considerem distúrbios mentais uma espécie de praga da vida moderna, algumas desordens são, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), mais prevalentes nos países em desenvolvimento. Das dúzias de guerras e conflitos armados ao redor do mundo, em quase todas as nações, a violência leva ao transtorno do stress pós-traumático, dificultando a recuperação das pessoas – e do país – após o fim dos conflitos.

De acordo com Rahman e seus colegas, mães do sul da Ásia têm mais depressão pós-parto do que as de países ricos. Pessoas de regiões menos privilegiadas também sofrem com stress econômico severo. “Em muitos casos, essa pilha de adversidades está associada à baixa saúde mental”, acredita o sociólogo Ronald Kessler, da Escola de Medicina de Harvard. Para indivíduos no limite da sobrevivência, as ramificações econômicas de uma psicopatologia podem ser devastadoras. Quando alguém tem um distúrbio sério, “perde sua força e capacidade”, diz o pesquisador Paul Bolton, da Universidade Johns Hopkins.

Para compensar a falta de profissionais que trabalhem com esses distúrbios nesses países, Neuner e sua equipe recrutaram candidatos que soubessem ler, escrever e que tivessem empatia e desejo de colaborar. Um terço dos ruandeses e metade dos somalis apresentavam transtorno de stress pós-traumático, e muitos dos que poderiam se tornar conselheiros precisavam ser tratados antes. Para alguém com distúrbios, as experiências desesperadoras são “desligadas” do tempo e do espaço, como se ficassem fora de sincronia com sua própria história, mas nem por isso se tornam menos incômodas: o que não é incorporado se torna uma espécie de “fantasma” que passa a assombrar a pessoa. “Quando essas memórias são ativadas, o cérebro ‘entende’ que há ali perigo imediato, porque não está consciente de que é apenas uma lembrança. O que queremos é agarrar essa representação emocional, devolvê-la para o seu lugar e conectá-la com a história dessa pessoa”, diz Neuner.

Os terapeutas de refugiados passaram seis semanas aprendendo a ajudar pacientes a moldar sua vida em uma história coerente, incorporando os traumas na narrativa. A estratégia funcionou.Em um acompanhamento de nove meses, 70% daqueles que passaram por terapia não apresentaram mais sintomas significativos do transtorno de stress pós-traumático; já os que não receberam tratamento tiveram taxa de recuperação de 37%. Em Rawalpindi, um distrito rural no Paquistão, cerca de um terço das novas mães apresenta depressão – o dobro da taxa encontrada em países desenvolvidos. Além do custo social e do sofrimento da mulher, a depressão pós-parto pode prejudicar o desenvolvimento mental e físico dos bebês. A maior parte dessas mães considera que os sintomas são o destino dos pobres, causado pelo tawiz, um tipo de magia negra. Muitas ficam ansiosas diante da possibilidade de ser rotuladas como doentes antes mesmo de apresentarem os sintomas. Ainda mais grave: nesse local, com uma população de 3,5 milhões de habitantes, existem apenas três psiquiatras.

Para vencer barreiras, Rahman e outros pesquisadores recrutaram agentes da saúde feminina para trabalhar com terapia de distúrbio mental em suas 16 visitas anuais a cada uma dessas mães. Até há pouco tempo faziam aconselhamento sobre nutrição e educação infantil, mas o curso de dois dias habilitou-as a incluir técnicas básicas de saúde mental em seus currículos. A abordagem de Rahman toma por base a terapia cognitivo-comportamental, na qual conselheiros tentam corrigir pensamentos negativos ou distorcidos por meio da discussão e da sugestão de novos comportamentos. Se uma mãe afirmar que não tem como custear a alimentação para o bebê, por exemplo, a profissional questiona a suposição e sugere opções para a dieta da criança. Um ano após o parto, mães que receberam essa orientação apresentaram metade da taxa de depressão grave, quando comparadas àquelas que não receberam visitas tradicionais. Rahman acredita que a estratégia funciona por dar a elas autonomia para resolver seus problemas. Felizmente, mais esforços para melhorar a qualidade de vida psíquica de populações carentes estão a caminho. No Paquistão, por exemplo, profissionais da saúde ajudam a garantir que esquizofrênicos tomem seus remédios. Mas o grande obstáculo ainda é fazer com que essas práticas se tornem rotina.


Fonte: Revista Mente e Cérebro

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