Crimes sem castigo
Os excessos cometidos na ficção e a violência presente na realidade.
Ao observar notícias recorrentes
nos noticiários, somos obrigados a conviver com a violência como fator
indissociável da realidade, e em muitos momentos, prestes a nos afligir, tão naturalmente quanto os congestionamentos
em metrópoles. São situações corriqueiras em que temos a falsa impressão de que
suportar a violência é parte da vida.
Há algumas semanas um telejornal
mostrava cenas em que um automóvel atropelava um motociclista parado em uma
esquina. Após a colisão, um rapaz que ocupava o banco do carona desceu do carro
e avançou sobre o motociclista que reagiu, sacou um revólver e atirou. E
enquanto o apresentador da emissora explicava que eram pai (ao volante) e
filho, reagindo contra o assaltante que levara a moto, as imagens mostravam o
pai tentando usar o carro como arma mais algumas vezes, antes de descer para socorrer
o filho, mortalmente ferido.
Acontecimentos que ganharam
manchetes relataram histórias trágicas de jovens assassinados na porta de suas
casas, em lanchonetes e no mencionado trânsito das cidades. E mesmo crimes
bárbaros como a tortura e morte da dentista Cinthya Moutinho, por mais
socialmente condenável que tenha sido, foi reproduzido dias após, levando outro
ser humano à morte.
Nas cidades mais estruturadas,
onde a miséria é proporcionalmente menor, curiosamente, parece existir mais
violência desmedida. Como explicar tanta violência em uma sociedade em que
ainda há problemas, mas onde também aconteceram inegáveis avanços no
compartilhamento de bens e serviços entre a população?
As sociedades primitivas se
organizavam ao redor de grupos rivais. Naquela realidade, em que a
sobrevivência dependia da aceitação individual nessas tribos, os líderes eram
elevados por suas ações violentas, interpretadas como fonte de poder ou força.
Essa constatação antropológica talvez possa explicar, em parte, a identificação
humana com o emprego da violência como instrumento de superação de
dificuldades. Esta sensação está presente em nosso inconsciente, ou seja, no emaranhado psíquico mais insondável que
corresponde aos processos mentais primitivos, onde irrompem muitas das nossas
pulsões, sensações e emoções. Por exemplo, a angústia, o medo, as paixões, a
vida e a morte.
A partir do inconsciente, a
pulsão de morte se estabelece como uma componente intrínseca à pulsão de vida. Ou seja, a
percepção da morte nos estimula a valorizar a vida. E assim, por mais que o
indivíduo esteja exposto em condições adversas, o ato de matar não é normal
e é humanamente identificado como errado. A exceção ocorre somente nas pessoas
destituídas de compaixão ou que sofram de séria doença em Saúde Mental. Contudo,
a prevalência de pessoas acometidas por psicopatia não poderia ser
representativa entre a população, a ponto de explicar tanta violência e mortes.
Há alguns dias, ao acompanhar um
desenho “infantil” a que meu neto assistia na TV, percebi que mesmo não havendo
armas de fogo, sangue e personagens em agonia, os disparos de laser, golpes e
desintegrações, eram representados a todo instante. E atenta à violência
disfarçada de divertimento, a criança era estimulada a libertar as suas fantasias, identificando-se com ícones
violentos, suas ações e realizações.
O mesmo propósito de
entretenimento e oferta para promoção das fantasias inconscientes que todos
temos, podemos perceber no cinema, em programas da TV, nos vídeo games e na
Internet. O estímulo à violência é oferecido em doses intermináveis para
crianças, jovens e adultos. E através de produções elaboradas para reproduzir e
criar realidades, há acesso irrestrito à emoção de assistir às cenas em que uma
pessoa atira em outra, ou atropela, queima, explode, tortura... Enfim, na era
da revolução tecnológica e da comunicação digital, o macabro repertório de
formas de ferir e matar, na ficção, parece ser tão inesgotável quanto acessível.
Não há dúvidas que a repetição de
experiências emocionais, mesmo quando virtuais, tende a amenizar a surpresa que
sentimos naturalmente ao presenciamos um feito inédito. E nesse contexto, a
exploração da violência fictícia, como alternativa de divertimento, pode sim
estimular atitudes reais. Pois assim como após a emoção despertada pelas
primeiras jogadas geniais de um craque da bola, através da frequência com que
elas se repetem, nós nos acostumamos não só a acreditar que são movimentos
possíveis, como esperamos por eles. Ao assistirmos perseguições em alta
velocidade, em que tiros são permanentemente disparados por todos os
envolvidos, e os acidentes, ferimentos e morte, num primeiro momento, nos
surpreendem. Com o tempo e a repetição de cenas similares, a velocidade, a
destruição, os tiros e até as mortes, tendem a se tornar triviais. Monótonas
até.
Contudo, recorrer à conclusão que
coloca apenas sobre os ombros da mídia e da indústria do entretenimento, a
responsabilidade pelo aumento nas ações violentas praticadas em todas as
camadas sociais, é uma escolha reducionista, que se abstém de tratar as
características mais profundas da origem do problema. Basta observar, por
exemplo, as nações que consomem conteúdos audiovisuais idênticos ou similares
aos exibidos no Brasil, e revelam índices relacionados a crimes bem menos alarmantes,
para percebermos que somente regulamentar a exposição da violência em produtos
de ficção, seria prudente, mas isoladamente não representaria grande avanço.
De fato, para modificarmos o
progressivo ciclo de violência que se instalou em muitas regiões do país,
também deverão ser áreas de trabalho prioritárias: a educação, como forma de
desenvolvimento intelectual e humano, a promoção da cultura e dos esportes,
como respostas sociais às necessidades emocionais da população (alternativas à
violência ficcional), e a presença do
Estado, não apenas como cuidador e distribuidor de justos benefícios para
as parcelas menos favorecidas, mas também e principalmente, como promotor
eficiente de segurança e justiça em todas as camadas sociais.
Presenciar a reconhecida
impunidade que assola o país, e assistir aos incontáveis exemplos de criminosos
que mesmo identificados, conseguem escapar das punições que, por lei, mereciam
(ou da maior parte delas), exerce influência muito mais nociva à ética e promoção
de qualidade de vida, que qualquer superprodução violenta de Hollywood.
Em uma sociedade permissiva, onde
os cidadãos detectam que há ineficiência na investigação de crimes, e permanente
flexibilização na aplicação das leis, a percepção de limites e responsabilidade
tende a ser desconsiderada ou negligenciada. Flexibilizam-se sentimentos e a Culpabilidade. Ou seja, a relação psicológica
entre os autores dos crimes e a sua conduta.
Autor: José
Toufic Thomé
Psiquiatra-Psicoterapeuta (ABP/AMB)
Presidente
da Unidade Brasil da Rede Ibero-Americana de Ecobioética / Cátedra UNESCO de
Bioética,
Vice-presidente da Secção Psiquiatria e Intervenção em
Crises da Associação Mundial de Psiquiatria (WPA),
Vice- presidente da Associação Brasileira de Psicoterapia-ABRAP
Coordenador do Curso
Intervenções em Situações Limite Desorganizadoras do Inst. Sedes Sapientiae-SP.
Vice- presidente da Associação Brasileira de Psicoterapia-ABRAP
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