Tenho certeza que se meu amigo e mestre Sérgio Arouca, um dos mais renomados médicos sanitaristas do país — e que nos deixou prematuramente — estivesse aqui, ficaria decepcionado com a proposta do governo federal de "importar médicos cubanos" para o atendimento de populações que vivem em regiões carentes de profissionais da saúde.
Tal medida está completamente desconectada dos princípios básicos que norteiam as ações do Sistema Único de Saúde. As primeiras conversas e experiências desenvolvidas na construção do SUS surgiram na Universidade de Campinas, no começo dos anos 1970. Faziam parte do grupo de estudos docentes do Departamento de Medicina Preventiva, mas quem mais me chamou a atenção foi o dr. Arouca, dono de mente brilhante e grande sensibilidade social.
Essa meia dúzia de "profetas da saúde", seguidos por igual número de alunos do terceiro ano de medicina na Unicamp, contando com uma Kombi usada e muitos sonhos e desafios, rompeu paradigmas defendidos com unhas e dentes pela Sociedade de Medicina local, onde militavam médicos tradicionalistas avessos a propostas inovadoras.
Foi na luta e no confronto de opiniões, portanto, que surgiu o embrião daquilo que seria o Sistema Único de Saúde no Brasil. Inicialmente batizado de Prev-Saúde, a proposta de universalização do atendimento médico ganhou força com a adesão de pesos pesados à causa, como o dr. Aristodemo Pinotti.
Mas foi Sérgio Arouca quem batizou o sistema com o nome que se tornou, anos mais tarde, no maior modelo de assistência global de saúde do mundo. Sérgio Arouca alimentava esse sonho desde que assumira a presidência da grande Conferência Nacional de Saúde, reunindo estudiosos do Brasil e do exterior.
Como vivenciei esse momento histórico das políticas públicas da saúde no Brasil, sinto-me confortável em afirmar que a ideia de "importar" médicos cubanos para atuarem em regiões carentes de profissionais brasileiros nos grotões do país é uma afronta à memória de Sérgio Arouca e de todos aqueles que desenvolveram as bases de criação do Sistema Único de Saúde.
Não adianta trazer médicos de Cuba, da China ou do Iraque. O que o Brasil precisa, com urgência, é aprimorar aquilo que é considerado pelo Congresso dos Estados Unidos um modelo a ser seguido. A reforma do SUS é a única possibilidade real de sucesso para a saúde brasileira, mas é preciso enfrentar as falhas do sistema e desenvolver novas estratégias a partir de experiências bem-sucedidas dentro e fora do país.
Afinal, será que faltam médicos para atender ao público das comunidades pequenas espalhadas pelo Brasil? Como médico, estou convencido de que esta questão embute apenas uma meia verdade. Senão vejamos: o médico cubano atende uma pessoa com quadro infeccioso e indica a realização de exames para melhor precisão do diagnóstico. Onde estão os laboratórios? E em caso da necessidade de internação, onde estão os hospitais? E os enfermeiros e auxiliares? Tudo isso não são jabutis colocados em cima da árvore.
As regiões metropolitanas, onde se concentram densas populações e infraestrutura precária, não se enquadram no perfil geográfico que se pretende contemplar com a presença dos médicos "importados". Onde a morte ronda os pacientes largados em corredores de hospitais públicos? Nos grandes centros urbanos, obviamente. E parece senso comum que não faltam profissionais de saúde nessas regiões.
O que falta para resolver a situação caótica da saúde no Brasil é coragem para enfrentar o problema de frente. Não é na prescrição da "empurroterapia" ou analgésico da demagogia que cuidaremos da vida da população. As prefeituras das grandes capitais carecem de médicos dedicados ao serviço público. E isso se resolve pelas leis de mercado, com salários atraentes e condições de trabalho dignas.
A prioridade não é a criação de cursos de medicina em Quixeramobim, ou em qualquer outro ponto longínquo do país, mas de se estabelecer planos de metas capazes de gerar grande contingente médico dentro de uma carreira estabelecida pelo governo federal, exclusiva, generalista no conhecimento assistencial a crianças, mulher e adultos. Um exame federal seria realizado na medida das vagas regionais, prevista como pré-requisito em contrato assinados com validade mínima de um ano, para atendimento em comunidades sem médicos.
Dessa forma, se acrescentarmos ao SUS um subsistema exclusivo de carreira típica de Estado, com obrigatoriedade de retorno social ao povo desassistido, salário justo, ajuda de custo como pagamento de aluguel, alimentação, transporte para o trabalho, atualização médica e reciclagem presencial e/ou virtual, teremos uma cobertura nacional satisfatória de profissionais da medicina. Cumprida essa etapa, esses jovens doutores estarão aptos e com acesso garantido ao trabalho em grandes hospitais nas capitais e cidades brasileiras densamente povoadas. É disso que o Brasil precisa.
(Cirurgião pediatra e professor universitário, ex-deputado federal e prefeito cassado por suspeita de corrupção, em Campinas - SP)
Artigo publicado no jornal Correio Braziliense.
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