terça-feira, 31 de julho de 2012

Artigo: Qualidade de Vida

Eu prefiro viver na rua

Cerca de 10% da minha agenda no consultório é destinada para pessoas sem renda ou em situações sociais desfavoráveis. Isto representa uma pequena retribuição por tudo que foi investido em mim. Alguns colegas médicos, amigos pessoais e instituições encaminham pacientes para essas vagas. Numa manhã convencional em Brasília, meu celular deu o ar da sua graça. Foi até estranho, pois ele não havia tocado durante toda a manhã. Ao telefone, estava o representante de uma pastoral da Igreja Católica perguntando se havia a possibilidade de agendar uma consulta nos próximos dias. Perguntei sobre o que se tratava, para conhecer a real urgência do pedido. E ele conseguiu detalhar apenas que haviam acolhido “um mendigo que não parecia mendigo”. A explicação estava muito vaga, realmente, mas foi o que ele pôde fazer. E eu notei que ele não conseguia explicar adequadamente aquela colocação. Embora eu não tivesse compreendido o real motivo da avaliação, solicitei a minha secretária um agendamento dentro da mesma semana. Combinamos que a equipe da pastoral traria o paciente na Kombi da instituição e aguardaria até o final do atendimento para que as condutas fossem encaminhadas.

No dia agendado, ele olhava atentamente para a televisão ligada na sala de espera, e vez por outra balançava a cabeça num tom de desaprovação em relação às notícias de um programa jornalístico da TV. Os dois acompanhantes da pastoral estavam ao lado dele e não expressavam preocupação. De fato, não havia por que se preocupar. Ele estava calmo, tranquilo, cortês e adequado. Nem parecia um paciente. Naquele mesmo dia, eu já tinha atendido “não mendigos” com expressão comportamental muito mais agravada. Lentamente, eu me desloquei até a sala de espera e o chamei para o atendimento. De forma respeitosa, ele direcionou o olhar para mim e abriu um discreto sorriso com o canto da boca. Ele acenou com a cabeça e caminhou sem necessidade de auxílio para o meu consultório. Ofereci água e café, mas ele não aceitou. De forma curiosa, ele “passou os olhos” por todo o consultório e vividamente ele apontou para as pequenas estátuas de Lampião e Maria Bonita que se encontravam numa prateleira bem acima da minha cadeira. Com um tom de voz baixo, ele pontuou: “Pessoas corajosas! Eu gosto disso”. No decorrer da fase introdutória da entrevista, foi possível perceber seu ótimo conteúdo semântico bem como sua diferenciação cultural, pois suas colocações eram aprofundadas e embasadas. Seria por isto que me referiram “um mendigo que não parecia mendigo”. O pouco que eu sabia foi a informação passada pelo funcionário da pastoral. O paciente morava nas ruas há aproximadamente 3 anos. Ele vivia numa quadra em Brasília com muitas árvores frutíferas o que garantiu parte da sua subsistência. Ele era natural do interior de São Paulo e pelo que eu pude entender ele veio andando de lá até aqui. Devido uma complicação de tuberculose pulmonar, ele necessitou de uma internação clínica. Aí, a pastoral o encontrou, visto que, outros trabalhos sociais já eram executados neste hospital pela mesma instituição religiosa.

A entrevista se desenrolou e, talvez, o paciente tivesse um quadro afetivo com alguns episódios agravados por sintomas psicóticos. Refiro-me que talvez, pois nunca poderei confirmar esta possibilidade. Ao final desta crônica, você entenderá o porquê. Ele não concordava com a consulta, mas não demonstrou raiva nem agressividade por ter sido levado a mim. Ele até brincou e pontuou “que bom que o pessoal da pastoral gosta de cuidar e ajudar, pois, no fundo, eles se cuidam e se ajudam também”. Ele continuou e retrucou “eu não vejo motivo de estar aqui e nem razões mentais para algum tratamento”. Tentei de forma cuidadosa abordar a vivência de rua, os riscos desta escolha, a família e a distância da felicidade. Meu objetivo era entender, naquele momento, as escolhas de vida dele e quem sabe protegê-lo deste modelo que julguei infeliz. Que “bola fora” dada por mim! A minha forma de ver as coisas não pode em hipótese alguma ser interpretada como uma necessidade de domínio ou de certo absoluto. Por mais que eu tenha este cuidado e procure me proteger deste erro, deixei isto aparecer quando no meio da entrevista trouxe uma reflexão sobre o viver nas ruas. A cena ainda é bem real na minha cabeça. A minha intervenção foi mais ou menos neste sentido: “... viver nas ruas, não ter onde dormir, sentir frio, afastar-se dos vínculos, perder referenciais e ficar exposto a riscos podem causar dores em você. Não seria importante ajustarmos algumas propostas de tratamento que ajudem a organizar a vida e quem sabe fazer você sair das ruas?”.

Ele arregalou os olhos e olhou para bem dentro dos meus de maneira transfixante. A partir daí, a consulta se transformou numa espécie de monólogo no qual o paciente expressou a sua opinião sobre a minha intervenção. Assim foi a sua construção:

“...Você julga que seu mundo é melhor do que o meu? Você julga que meu mundo é doente? Como você pode saber? Você nunca viveu no meu, mas eu vivi vários anos no seu. Eu escolhi viver no meu. No seu mundo, as pessoas dão tapinhas nas suas costas de forma amigável e falam que estão interessados em você. No entanto, por detrás não dão a mínima e se duvidar querem até o seu mal. No meu mundo, já sabemos quem gosta da gente e quem representa ameaças. As relações não são letradas, porém são diretas. No meu mundo, quem gosta de você gosta mesmo e quem te odeia demonstra isto sem cerimônias e falsidade. Podem até te matar, todavia não foi um falso que batia nas tuas costas e sim um inimigo conhecido. No seu mundo, o bom é medido pelo que se tem, portanto seu valor está ligado ao que tu vestes, de que forma tu andas, com quem você se relaciona, com a sua capacidade de dar um retorno e com sua capacidade de agregar apoios. No seu mundo, as relações são feitas não pelos sentimentos, mas pelo material. Se você tinha tudo isto e perdeu, o problema é seu e quem estava ao seu lado desaparece e procurará um outro que tenha tudo isto. No seu mundo, você somente é visto se tiver ou representar alguma importância. No meu mundo, muitas vezes, as roupas estão sujas, o corpo está fedendo, o sorriso é desdentado, o cabelo está em desalinho e a barba por fazer. Isto não faz diferença nas relações. Você não é excluído se for assim. Você não é julgado se for assim. Você não é analisado se for assim. No seu mundo, as pessoas são egoístas. Uns têm muito e outros têm pouco. Estes que não têm quase nada ficariam satisfeitos com o mínimo a ser ofertado e dividido. No entanto, no seu mundo, pouco se divide. No seu mundo, nem remorso existe em ter uma mesa farta enquanto muitos nem têm o que comer. No meu mundo, divide-se mais, mesmo que não se tenha muito. O exemplo que posso mostrar desta divisão é quando estamos dependentes de alguma droga e não ficamos tão resistentes em dividi-la. Agora, perceba que no nosso mundo dividimos, inclusive a droga que para alguns é tão necessária quanto a comida. Por falar nisto, no seu mundo, a comida dificilmente é dividida enquanto no nosso temos uma forte tendência de dividi-la. No seu mundo, os sonhos são muito tolos, pois o que é buscado, geralmente, está relacionado no possessivo, ou seja, naquilo que pode ser mensurado. No meu mundo, os sonhos podem ser até mais loucos, porém são melhores. Nós sonhamos com a liberdade e com a nossa existência. Embora alguns tenham ficado fracos da cabeça e com algumas dificuldades mentais, somos o que queremos ser. No seu mundo, você não pode ser o que você quer ser, pois é feio e quando a maioria e a sociedade dizem que algo é feio, você não tem coragem de encarar. No seu mundo, muitas pessoas não têm respeito pelas outras. Os civilizados são animalescos. No seu mundo, mata-se, rouba-se, corrompe-se e ignora-se com uma facilidade muito grande. No meu mundo, até que existe muita violência e sofrimento, mas, no seu, isto é regra. No meu mundo, eu durmo olhando para as estrelas e se eu quiser posso andar e viajar na hora que eu desejar. Já no seu mundo você se derrete de felicidade por ter um pequeno apartamento no seu nome. No seu mundo existem muitos doutores e pessoas que gostam de serem chamadas de doutores. No meu mundo não existem “doutores” que gostam de mostrar seus saberes ou que precisam mostrar que sabem mais do que os outros. Enfim, no seu mundo existem muitas coisas que vocês julgam importantes e boas, mas que eu tenho minhas dúvidas sobre a realidade delas. No seu mundo, as pessoas olham para as pessoas do meu mundo de uma forma má, desconfiada, arrogante e preconceituosa. As pessoas do seu mundo nos veem como vagabundos e como artistas na arte de vadiar. As pessoas do seu mundo são muito cruéis na arte de julgar. As pessoas do meu mundo só querem sobreviver. As pessoas do meu mundo sentem frio, fome e sede. Mesmo assim não ficamos buscando adjetivos para vocês nem atacando vocês pela parcela de culpa nesta falta de ordem social. No seu mundo, a diferença entre todos é alimentada. No meu mundo, a diferença entre todos não faz sentido. Então, deixe-me viver no meu mundo. Não gosto e não quero o seu mundo. Como te disse, já vivi nele e se posso escolher não o quero. Tem muita coisa triste e mesquinha nele. No seu mundo, as escolhas são restritas. O poder, a política e os jogos de interesse limitam nosso arbítrio de escolher. No meu mundo, posso não ter nada de valor, mas é do meu jeito. Faço da maneira que achar melhor. Portanto, seu mundo é muito sem graça.

Com este longo relato, chegamos, praticamente, ao final da entrevista inicial. Fiz mais algumas perguntas objetivas a fim de encaminhar uma proposta terapêutica. Tentei firmar uma nova consulta e quem sabe buscar uma vinculação com ele. Depois deste contato, tive a impressão de que os outros não aconteceriam. Infelizmente, eu acertei, pois este paciente nunca mais retornou. Semanas depois da primeira consulta, liguei na pastoral para ter informações sobre o paciente. A pastoral me relatou que o paciente tinha desaparecido há algumas semanas. Eles o procuraram, mas não existiu sucesso nesta cruzada. Não tínhamos nenhuma informação mais precisa dele, ou seja, nome completo, endereço da família, filiação, estado civil e grau de instrução. Tudo ficou uma grande incógnita com exceção do explosivo relato que ele havia me fornecido. Que pena! Vez por outra penso nesta entrevista. Procuro refazê-la mentalmente e enxergar se deveria ter cursado outro caminho. Hoje, eu não determino que aquela vontade de reavaliar a vida dele tenha sido o motivador do desaparecimento. Na verdade, entendi a mensagem: ele não era desse mundo e não se adaptaria novamente nele.

Quando ando pelas quadras da cidade, aguço meu olhar para ver se eu o encontro. Até ontem não obtive sucesso. Bola para frente. Quem sabe, um dia voltamos a nos encontrar! Confesso que não tenho instrumentos para definir se o meu mundo é melhor ou pior do que o dele, todavia uma coisa eu posso concluir de forma absoluta: o “meu mundo”, que é o mesmo seu leitor, precisa melhorar muito, muito mesmo!

Autor: Dr. Régis Eric Maia Barros
(Psiquiatra)
contato: psiquiatria@stabilispsiquiatria.com.br

2 comentários:

  1. Dr.Régis
    Posso lhe fazer uma pergunta, o que faço com minha depressão, pois se me trato anos com mediamento e terapia, e mesmo assim nunca estou totalmente bem, se não tomo medicamento pioro, o que tenho mais que fazer para me sentir feliz de novo, sentir que vale a pena viver, obrigada

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  2. Parabéns pela iniciativa, o mundo seria melhor e menos egoísta se outras pessoas pensassem assim!

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