quarta-feira, 19 de maio de 2010

Turbilhão de emoções


Pacientes com transtorno bipolar precisam lidar com desequilíbrios violentos entre crises de depressão e de mania. Adesão ao tratamento com estabilizadores de humor e antidepressivos, porém, permite controlar a doença.
Surtos de perseguição, confusão mental, alucinações e ideias de grandiosidade surpreenderam e transformaram a vida da fisioterapeuta Fátima da Silva*, 27 anos. Os sintomas surgiram há mais de 10 anos, quando ela soube que a mãe retirara um tumor maligno da mama. Depois de uma leve depressão, a adolescente passou a sentir uma euforia descontrolada. Comprava roupas e acessórios compulsivamente, imaginava que todos estavam mentindo e que salvaria a mãe do câncer. Até receber o diagnóstico de transtorno bipolar (TB), oito meses depois da primeira crise, Fátima e a família desconheciam a doença. “A notícia nos devastou. Estava na flor da idade e julguei que seria difícil controlar aquele turbilhão de manifestações tão arrasadoras. Eu ficava irreconhecível, me imaginei dependente de remédios por toda a vida, porque a bipolaridade ainda não tem cura”, relata.
Especialistas garantem, no entanto, que medicamentos estabilizadores e antidepressivos, associados à psicoterapia, tratam as crises e previnem novos surtos. Com o tratamento, Fátima voltou a estudar, concluiu o ensino médio, fez vestibular, foi uma universitária dedicada, se formou e estava no mercado de trabalho quando uma tremenda empolgação devido a todas essas conquistas lhe tiraram novamente a paz. Ela conheceu, então, um lado mais cruel do transtorno: o preconceito.
“Não dormia e falava sem parar, achava que era amiga de famosos. Fui internada para controlar a crise. Ainda na clínica, soube da minha demissão por conta do transtorno. Até hoje, pouquíssimas amigas sabem da minha doença. Uma delas, sem desconfiar do meu problema, aconselhou uma outra colega a fugir de um namorado bipolar. Meu porto seguro é a minha família, que me apoiou em todos os momentos. Sem eles, não conseguiria seguir em frente”, acrescenta.
A bipolaridade é uma condição mais frequente do que se imagina. Dados da Associação Brasileira de Transtorno Bipolar revelam que a patologia acomete cerca de 15 milhões de brasileiros. Quando não tratado, o mal promove grande sofrimento e chega a incapacitar os atingidos. “O paciente bipolar apresenta quadros de depressão alternados com exaltação de humor, expansão do comportamento, de desejos e de pensamentos. A predisposição genética é marcante, mas são os fatores ambientais os grandes responsáveis por desencadear as crises. A alternância pode ocorrer em semanas, dias ou horas”, explica a psiquiatra e coordenadora do Laboratório de Psiquiatria e Humanidades da Faculdade de Medicina da Universidade de Brasília (UnB), Maria das Graças de Oliveira.
O primeiro surto geralmente é desengatilhado por um fato marcante na vida da pessoa. À medida que vão ocorrendo, as crises ficam mais intensas — e podem ser provocadas por fatos corriqueiros. “A associação com a dependência de álcool e drogas é comum e agrava o TB, porque prejudica a adesão ao tratamento. A mortalidade é elevada e o suicídio marca a história dos pacientes que não conseguem se tratar”, garante a médica. “A psicoterapia é uma aliada importante do tratamento psiquiátrico. Ela promove a aceitação do problema e o autoconhecimento. Um paciente bem tratado pode levar uma vida normal.”
Tabu
O economista Flávio Pereira*, 62 anos, teve a primeira crise enquanto se dedicava a uma pós- graduação, em 1976. A doença era um tabu e nem os médicos tinham bom entendimento do assunto. O diagnóstico foi revelado à esposa de Flávio em um envelope lacrado. “Tinha crises de depressão alternadas com surtos de extrema euforia e megalomania. Subia em mesas da Universidade de São Paulo (USP) para discursar, comprei um carro totalmente destruído, modelo 1954, imaginando que o deixaria novo em folha e me hospedei, sem ser convidado, na casa do meu chefe por três dias”, relata. “A mente acelera e o doente geralmente não aceita as internações.”
Na época do diagnóstico de Flávio, os episódios mistos de depressão e euforia eram tratados com remédios fortíssimos, que não controlavam a doença. “Já tentei o suicídio três vezes. Sinto falta de ter pessoas mais solidárias ao meu lado. Hoje, posso contar com drogas estabilizadoras de humor e a psicoterapia foi muito importante para eu entender o que se passa comigo. Infelizmente, minha família não me apoia e isso é comum na história dos bipolares. Eu me sinto sozinho”, lamenta.
Para conhecer mais sobre a bipolaridade, os pais de Fátima ajudaram a criar em Brasília o Núcleo de Mútua Ajuda a Pessoas com Transtornos Afetivos (Apta). Nas reuniões do grupo, os pacientes percebem que não estão sozinhos. “Lidar com o TB é um desafio. Nos encontros, trocamos experiêcias, aprendemos com psiquiatras e ajudamos os pacientes a retomar a vida”, explica o aposentado Edvaldo da Silva, pai de Fátima e diretor do Apta.
O psiquiatra Eduardo Tischer, do Programa de Distúrbios Afetivos e Ansiosos da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), pondera que é fundamental que o paciente tenha uma rotina, preze pelo sono e pelo lazer e invista em relacionamentos que tragam apoio. “Estudos tentam identificar os marcadores neurológicos para o TB. Cada paciente, entretanto, apresenta particularidades, e as terapias com psicólogos devem ser direcionadas às necessidades de cada um. Os medicamentos também são adequados caso a caso e reavaliados periodicamente. O importante é nunca abandonar o tratamento”, alerta.

Livro

O publicitário Marcelo Diniz, 62 anos, está há mais de uma década sem crises. Ele acaba de lançar um livro (Crônicas de um bipolar, pela Editora Record) no qual conta como convive com o TB. “É um desabafo, no qual conto as situações que passei. Mas a bipolaridade ainda é desconhecida no Brasil e acho que o trabalho pode ajudar a minimizar o preconceito”, diz. A obra relata de forma bem-humorada os apuros vividos por Marcelo. Pouco antes da passagem frustrada do cometa Halley em 1986, por exemplo, ele descobriu que o nome do corpo celeste ainda não havia sido registrado — nem no Brasil nem nos Estados Unidos. “Larguei o emprego e abri uma empresa para registrar a marca com o nome do cometa. Queria movimentar empresas de comunicação e entretenimento nos dois países. O bipolar imagina poder tudo. Já tentei também vender praças em minha cidade”, diz.
O mais triste, segundo Marcelo, é que muitos bipolares não se tratam por medo de perder a criatividade. “Quando estamos eufóricos, porém, não criamos nada que preste. O processo criativo deve andar de mãos dadas com a racionalidade. A euforia é ilusão e a qualidade de vida de todo bipolar depende do tratamento”, assegura.

Fonte: Correio Brasiliense

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