segunda-feira, 3 de maio de 2010

Estudo revela que, apesar de a memória se desvanecer, os portadores do mal de Alzheimer não perdem a possibilidade de sentir

A memória pode se apagar, mas os sentimentos perpetuam. Embora se esqueçam facilmente dos fatos, as emoções decorrentes de um acontecimento — coisas como um filme, um telefonema, uma visita — não se extinguem em pacientes com problemas de memória, conforme costuma-se pensar. Um estudo realizado na Universidade de Iowa, nos Estados Unidos, e publicado no periódico especializado Proceedings of the National Academy of Sciences (Pnas) conseguiu demonstrar que os portadores de doenças como o mal de Alzheimer estão menos ausentes do que se imagina. Submetidos a um teste aparentemente simples, eles continuaram a experimentar sensações como tristeza e alegria, mesmo sem se lembrar do motivo.

De acordo com o principal autor da pesquisa, o neurologista Justin S. Feinstein, a expectativa é de que o resultado ajude a criar outros paradigmas nos cuidados dispensados a idosos que sofrem do problema. “Acredito que, com nossas descobertas, vamos fazer os membros da família desses pacientes perceberem que mesmo uma ligação rápida, uma visitinha ou uma simples piada podem fazer um mundo de diferença para o bem-estar e a felicidade de quem sofre de demência”, disse, em entrevista ao Correio.

No estudo, Feinstein e sua equipe fizeram um teste de memória com cinco portadores de diferentes graus de demência, mas todos com o comprometimento diagnosticado. Eles assistiram a um trecho de um filme triste, enquanto eram observados. Durante a exibição, todos demonstraram tristeza, seja chorando ou por meio de expressões faciais. Imediatamente depois do filme, os participantes da pesquisa disseram que se sentiam tristes e que foram afetados de forma negativa.

Entre cinco minutos e 10 minutos depois, eles passavam pelo teste de memória. Quatro pacientes conseguiram se lembrar de cinco ou menos detalhes, sendo que um deles não foi capaz de se recordar de nada. Posteriormente, tinham de descrever o que sentiam naquele momento. Todos continuavam tristes. O mesmo aconteceu quando assistiram a uma comédia. Embora não se lembrassem das cenas, eles reportaram uma sensação de bem-estar e humor. Uma das participantes contou aos pesquisadores que, no dia a dia, costuma ter sentimentos bons ou ruins, mas nunca faz ideia do que provoca essas emoções. “Quando me sinto bem, não me preocupo, obviamente. O ruim é quando estou me sentindo realmente triste e não consigo descobrir o porquê. E esses sentimentos não vão embora”, disse.

O amor

Por intuição, a professora Maria Ernestina Rocha Neves, 77 anos, aprendeu o melhor remédio para a doença do marido que, há uma década, tem Alzheimer: “É o amor”, diz. “Ele foi meu primeiro namorado, agora é meu neném”, brinca, com carinho, sobre o marido, Francisco de Assis Neves, 80. Mesmo parecendo ausente, quando chamado, Francisco olha para ela com adoração. “O que eu sou, Chico?”, pergunta Ernestina. Ele dá uma risada gostosa e responde: “Você é linda”.

Até quatro anos atrás, Francisco, ex-funcionário do Senado — “O mais culto que já passou por lá”, segundo a mulher —, ainda lia jornal e fazia palavras cruzadas. “Eu pedia para ele ler para mim, depois me fazia de desentendida e perguntava para ele: ‘O que era mesmo que estava escrito?’”, explica Ernestina. Hoje, porém, Francisco já não consegue assinar o nome. “Ele tinha uma letra linda”, recorda a mulher.

Apesar de a doença ter avançado há cerca de um ano e meio, Francisco é um homem saudável e faz coisas, como mastigar, que poucas pessoas no estágio em que se encontra conseguem realizar. “Tem de receber muito amor, carinho e paciência. Me dedico muito a ele, por isso que está assim. Não considero que ele dê trabalho. É um prazer tomar conta dele, ele tem de ter tudo do melhor”, ensina Ernestina.

Francisco não é paparicado somente pela mulher. Os seis filhos, as 14 netas e, agora, a bisneta estão sempre por perto. Às terças, quartas e quintas, os netos almoçam com os avós. “É só ele perguntar por algum filho que ele vem correndo”, conta Ernestina. Muito católica, ela emociona-se ao dizer que Francisco pode se esquecer de tudo — menos de rezar o Pai-Nosso e a Ave Maria. “Tem coisas que a ciência não consegue explicar.”

Acredito que, com nossas descobertas, vamos fazer os membros da família desses pacientes perceberem que mesmo uma ligação rápida, uma visitinha ou uma simples piada podem fazer um mundo de diferença”
Justin S. Feinstein, pesquisador da Universidade de Iowa

Hipocampo comprometido

De acordo com o coordenador do Centro para Alzheimer do Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Jerson Laks, não é possível afirmar, ao certo, o motivo pelo qual os portadores de Alzheimer se esquecem dos fatos, mas continuam com as sensações inerentes a eles. Porém, diz que há uma hipótese bastante plausível. “Na criança, quando o cérebro começa a se desenvolver, a primeira coisa que aparece é a memória emocional, processada na amídgala cerebral. Depois é que vem a parte cognitiva, processada em outra parte, o hipocampo. Na hora da involução, do mesmo modo, é possível que o comprometimento inicial seja do hipocampo, ficando ainda um traço do emocional”, afirma.

Segundo Laks, muitas vezes acontece de as pessoas acharem que podem falar qualquer coisa na frente de um portador de Alzheimer, com a certeza de que ele não vai entender. “Eles podem não se lembrar, mas fica o impacto emocional. É possível verificar isso, por exemplo, observando que eles ficam agitados”, diz. O médico explica que, mesmo na fase mais grave da doença, quando o paciente parece completamente afastado da realidade, o modo de falar interfere. “Ele não entende o que é dito, mas consegue entender a entonação da voz”, explica.

O autor da pesquisa conta que a dissociação entre emoção e memória em pacientes com amnésia data de 1911, quando o neurologista suíço Édouard Claparède escondeu um alfinete entre seus dedos enquanto apertava a mão de uma paciente. Poucos minutos depois, a mulher havia se esquecido do encontro. Porém, quando Claparède tentou apertar novamente sua mão, ela se negou. Quando perguntado o motivo, ela questionou: “Por acaso há um alfinete escondido na sua mão?”.

Apesar da resposta, Claparède alertou que a paciente deixou claro que não se lembrava de ter se ferido com um alfinete. Segundo Feinstein, contudo, experimentos como o do médico suíço tratam da resposta condicionada a um estímulo, ou seja, um reflexo natural. Já a pesquisa da Universidade de Iowa procurou estudar que a emoção decorrente de um fato persiste mesmo quando o evento que a induziu foi esquecido.

Com o resultado, ele espera que os cuidadores se conscientizem da necessidade de tratar bem os portadores de Alzheimer, independentemente de eles esquecerem dos fatos em questão de segundos. “Esse estudo tem uma implicação direta em como a sociedade trata indivíduos com distúrbios de memória, à medida que, mesmo que eles não se recordem do evento, podem continuar sofrendo ou se sentindo bem. Por exemplo, uma simples visita ou um telefonema da família podem influenciar positivamente o estado do paciente. Da mesma forma, uma piada engraçada pode aumentar o nível de felicidade dessa pessoa, mesmo quando ela não se lembrar de mais nada”, alerta o pesquisador, no estudo. “A pesquisa forneceu claras evidências de que tratar com respeito e dignidade os pacientes que sofrem de amnésia é mais do que uma simples questão moral”, afirma. (PO)

Descobertas recentes

Pesquisadores identificaram um gene que provavelmente aumenta o risco de um indivíduo desenvolver o mal de Alzheimer de início tardio, tipo mais frequente da doença. O estudo foi apresentado no último sábado, no encontro da Academia Americana de Neurologia, em Toronto, no Canadá. O gene, cuja abreviação é MTHFD1L, está localizado no cromossomo 6 e sua alteração foi identificada em 2.269 pessoas com Alzheimer. De acordo com o estudo, indivíduos com uma mutação nesse gene têm o dobro de riscos de desenvolver a doença, comparando-se com os que não possuem a variação.

Uma pesquisa divulgada na semana passada no periódico especializado Archives of Neurology mostrou que uma dieta rica em frutos oleaginosos (como castanhas, nozes e amêndoas), peixe e legumes diminui significativamente as chances de que uma pessoa desenvolva o mal de Alzheimer. Os cientistas, do Medical Center da Columbia University, em Nova York, nos Estados Unidos, analisaram as dietas de 2.148 adultos em idade de se aposentar e os acompanharam por quatro anos. Ao estudar detalhadamente as dietas de todos os participantes no estudo, os pesquisadores descobriram que os adultos que incluíam mais frutos oleaginosos, peixe, aves, frutas e verduras e menos laticínios gordurosos, carne vermelha e manteiga apresentaram muito menos chances de sofrer de demência. Os pesquisadores acreditam que o segredo esteja nos diferentes níveis de nutrientes específicos que essa combinação de alimentos oferece, como ômega 3, vitamina E e ácido fólico.

Há três semanas, cientistas japoneses publicaram um estudo no periódico online especializado The Faseb Journal, anunciando a descoberta de uma nova ferramenta que poderá revolucionar o diagnóstico do mal de Alzheimer. De acordo com eles, o exame mede o nível da proteína beta-amiloide no fluido espinhal do paciente. Quanto maior a presença da substância, maior a probabilidade de o indivíduo ser portador da doença. Os cientistas acreditam que o exame vai facilitar o diagnóstico precoce do mal, fase em que é bastante difícil identificá-lo.

No fim de março, pesquisadores da Clínica Mayo de Jacksonville, na Flórida, descobriram que um gene tanto pode proteger contra o desenvolvimento da doença de Alzheimer quanto promovê-lo, dependendo do nível de expressão desse gene no cérebro. Em dois estudos, publicados simultaneamente nos jornais Neurology e PLoS ONE, os cientistas descobriram fortes evidências do papel exercido pela enzima degradante da insulina (IDE – insulin-degrading enzyme) como fator de risco para a evolução da doença de Alzheimer. De acordo com os pesquisadores, foi descoberto um novo mecanismo de ação desse gene, que aumenta a suscetibilidade à doença de Alzheimer.

Passar os dias falando ao telefone celular pode proteger contra o mal de Alzheimer e mesmo fazê-lo retroceder, segundo um estudo realizado com ratos e publicado no início de janeiro, nos Estados Unidos. Os pesquisadores expuseram, por até oito meses, cerca de uma centena de ratos a ondas eletromagnéticas emitidas por celulares, durante uma ou duas horas diárias. Grande parte dos roedores foi geneticamente modificada para desenvolver um quadro equivalente ao do mal de Alzheimer e problemas de memória ao envelhecer, enquanto os outros foram mantidos normais e não mostravam nenhuma predisposição genética à doença. O estudo mostra ainda que as ondas eletromagnéticas geradas pelos telefones fizeram com que os depósitos de uma proteína, acumulada no cérebro dos ratos e diretamente relacionada ao Alzheimer, desaparecessem.

Três perguntas // Justin Feinstein

Como o estudo poderá mudar o tratamento com problemas de memória, especialmente em relação ao mal de Alzheimer?

Espero que nossas descobertas ajudem os cuidadores a perceber que, mesmo se o paciente não está lá "mentalmente", ele continua vivo "emocionalmente". Com esse conhecimento, nossa expectativa é que se faça o melhor para aumentar a qualidade de vida e o bem-estar dos pacientes com problemas de memória.

Como se explica o fato de pacientes com amnésia esquecerem os eventos, mas continuarem a sentir as emoções? É devido a um mecanismo neurológico ou psicológico?

Acho que há muitas respostas possíveis. As descobertas sugerem que os centros cerebrais que processam a memória estão completamente separados dos centros onde as emoções são formadas. Elas também sugerem que os pacientes com amnésia utilizam algo além da memória para mostrar seus sentimentos. Por exemplo, eles podem usar gestos corporais para isso.

É correto pensar que, mesmo quando parecem completamente fora da realidade, os pacientes são capazes de entender o que se diz a respeito deles?

Não tenho certeza. Se o campo da linguagem desses pacientes já está tão comprometido que eles não podem entender você, então muito pouca emoção deve ser evocada por frases como "Não aguento mais cuidar dessa pessoa". Porém, mesmo se eles parecem longe da realidade, os neglicenciar pode desencadear sentimentos como tristeza e solidão. Mesmo quando estão mal, eles não conseguirão comunicar seus sentimentos. O melhor, aqui, é seguir aquela regra de ouro: "Faça aos outros o que gostaria que fizessem por você".


Fonte: Correio Braziliense

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