terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Artigo: "Ser Médico"

De forma romântica, a imagem do médico apreciada e valorizada pela sociedade é uma mescla de “herói” e “justiceiro”. A justiça imposta neste olhar se dá pela vontade e desprendimento de lutar contra o que é mais temido. Isto mesmo, a morte. O médico escolhe um ofício cuja necessidade da prática o obriga a confrontar todos os dias com a doença e, por conseguinte, com a morte.

Quem seria o louco de lutar contra a morte que é representada folcloricamente por uma figura esquelética com capuz e manta negra além de portar uma foice na mão? Enfim, a figura do médico seria a responsável por se contrapor a este ceifador de vidas.

Não que de maneira mágica, o médico vença sempre. Talvez, se pensarmos no desfecho da morte/vida, o médico até perca mais, todavia ele sempre está lá. Munido do desejo de ajudar e fazendo frente a este tenebroso opositor, o médico se prontifica a defender os enfermos numa tentativa desesperada de impedir que o Anjo da Morte se aproxime deles. Neste contexto, alguns médicos “encheram os olhos”, sobretudo nas descrições literárias e históricas. Não é de se assustar que o médico medieval de Noah Gordan, permita-nos pensar como o médico é guerreiro, pois ele enfrentou tudo e todos, somente pelo desejo proibido de ser médico e querer ajudar o próximo. Quem não consegue se maravilhar com Lucano que era repleto de amor, bondade e capacidade de doação que são características inatas da prática médica. Como não pensar na irreverência do Sir Patch Adams na sua forma de lidar com a dor e o sofrimento, pois médico é isto, ou seja, conviver diariamente com a dor, angústia e tristeza sem se deixar esmorecer. Por fim, é preciso admirar os médicos sem fronteiras que, muitas vezes, largam tudo para amar e ajudar pessoas esquecidas pelo mundo o qual está conectado em outras demandas consumistas. De fato, ser médico é transcender culturas, idiomas, fronteiras e etnias com o único afã de oferecer conforto.

Os médicos atuais são diferentes destes exemplos acima? Não creio nisso. O que mudou é a forma social desta relação. O modelo político, econômico e de valores da sociedade quebrou esta relação tão bonita e mágica. A representação maior disto é um dizer atribuído a um político renomado que abriu sua boca publicamente para falar que “médico é parecido com sal, pois se encontra em todos os lugares e costuma se vestir de branco”. Quanta tristeza! Acredito que a figura folclórica da morte está dando gargalhadas com este dizer e batendo a foice no chão de tanta alegria na sua alma. Desculpe! A morte não tem alma, mas ela está chacoteando da alma do médico. A luta ficará mais fácil para ela. Eu não tenho dúvidas disto.

Enganam-se quem pensa que médico é rico e que a escolha por medicina é pautada por desejos financeiros. Ledo engano, pois, em muitos casos, o médico é rico de problemáticas que são adquiridas com uma prática de trabalho angustiante e sem valorização por parte da sociedade. Não é à toa, o fato de escutar que muitos médicos tiveram problemas de saúde sejam físicos ou emocionais ou que muitos médicos tiveram problemas com dependências químicas ou que muitos médicos cometeram suicídio ou que muitos médicos tiveram uma estrutura familiar fragmentada. Esta relação é óbvia, porque lidar com a vida (o bem divino maior) e lutar contra a doença e a morte (fatores de maior incômodo de todos) requer energia, envolvimento e uma capacidade de autos-cuidados constantes. Portanto, como fazer tudo isto neste cenário social em que somos vítimas de ataques sistemáticos? Além de sofrermos com nossa prática diária, sofremos por uma ultrajante percepção deturpada para conosco. Esta conjunção gera um “coquetel molotov” que explode diariamente dentro de nós.

Quando um jovem sonha em ser médico, lá no fundo está borbulhando um desejo altruísta o qual nasceu das mais diversas formas seja por admiração pela prática médica ou por uma energia inata e autóctone. Por mais que as escolas e cursinhos do modelo educacional brasileiro estimulem fazer vestibular para medicina para divulgação em outdoors dos aprovados, ninguém termina o curso de medicina sem ter no seu “DNA emocional” o desejo de ser médico. São seis anos de curso de graduação e mais 3 a 4 anos de residência. Isto mesmo! São 9 a 10 anos de formação e não estou falando de pós-graduações sejam lato sensu ou stricto sensu. Portanto, todos nós, médicos, passamos por esta jornada, ou seja, o pediatra que atende seus filhos e que se mostra solicito as suas demandas, o oncologista que tratou com responsabilidade algum familiar seu com câncer, o psiquiatra que te escuta de forma humana, o médico intensivista que não permitiu você ir quando o chamamento da morte era gritante e o emergencista que sempre está alerta nas situações mais agudas que te coloca em risco. E por aí vai, poderia citar todas as especialidades, inclusive valorizando aqueles sem especialidades definidas, pois no âmago todos nós executamos isto.

Para quê tudo isto? O que se busca com tantos anos de sacerdócio e provação?
O imaginário popular, às vezes, acredita que buscamos e alcançamos o gozo financeiro com viagens repetidas à Europa, carros importados, casa de praia ou de campo. “Deus do Céu”! Quanto engano e quanta fantasia. Imagino até que seja uma construção delirante. Teimam em achar que nossas contas bancárias são repletas de aplicações, dólares e euros. Não, nossas contas não são assim. Não, nós não temos fortunas. O trabalho e a vida do médico não permitem isto. É comum trabalharmos em 2 ou 3 empregos para ofertar o melhor conforto possível as nossas famílias. Isto nos custa uma jornada de 10 ou mais horas de trabalho por dia com alguns finais de semana sacrificados. Nossa vida literalmente é um corre-corre desenfreado. Os locais mais freqüentados por nós não são os cafés parisienses, os pubs ingleses, as cantinas italianas, os free shops americanos ou outros pontos típicos de países do exterior. Geralmente, estamos trabalhando em emergências, ambulatórios ou outras unidades de saúde. Talvez por ironia do destino, posso brincar e fazer uma analogia geográfica com estes espaços. Sim, por que não? De fato, freqüentamos o exterior todos os dias, pois estes espaços em que trabalhamos diariamente parecem uma Faixa de Gaza com uma diferença: as partes não brigam entre si, mas ambas atacam a figura do médico.

De um lado, temos uma população carente e desprotegida que, por vezes, enxerga no médico o algoz do péssimo atendimento na saúde. Não é incomum escutarmos que somos preguiçosos e indiferentes para com a dor alheia. Não é raro assistirmos que um médico foi agredido física ou moralmente em sua prática de trabalho independente de ser uma atividade privada ou um serviço público. É mais fácil queimar ou enforcar a peça mais frágil do sistema. Assim, é possível criar um vilão – o médico – numa proposta populista, insana e fomentadora do “pão e circo”. Por outro lado, temos os governantes com suas políticas macabras as quais criam condições de trabalho medíocres e nos colocam numa situação tristonha de fazer de conta, portanto numa situação de “fazer de conta” que praticamos alguma medicina digna. É nesta situação espremida, chamada por mim de Faixa de Gaza, que o médico se encontra.

Aprendemos a lidar com isto. Parece que já absorvemos esse modelo doloroso, inclusive, em alguns momentos, evitamos nos angustiar para não deprimir e padecer de algum mal. O mais triste é ter que terminar o plantão ou o turno de trabalho e lembrar naquilo que o político falou nos comparando com “sal”. Se fossem somente os políticos que pensassem assim até que conseguiríamos nos aliviar desta pressão, mas é difícil conviver com a certeza de que muitos pensam desta maneira e que em muitos momentos somos taxados das coisas mais tristes e incompreensíveis do que se possam imaginar.

O mais estranho é que todos sem exceção necessitaram, necessitam ou necessitarão de um apoio médico em algum dia. Ao ter o contato com este médico, é costume ficar grato pelo respeito, envolvimento e carinho dispensado no auxílio da redução do sofrimento. A ajuda é ofertada independente de procurar saber o valor das pessoas sobre o médico ou a medicina. Será que os médicos fazem isto pela ganância em ganhar dinheiro? Seria interessante que todos soubessem quanto os convênios de saúde pagam por consulta ou procedimentos. Seria interessante que todos soubessem quanto os médicos recebem por esta jornada de mais de 60 horas de trabalho na semana. Talvez quem irá chorar de tristeza e revolta seja você, meu nobre leitor, até por que não choramos mais. Simplesmente, continuamos trabalhar sendo médicos com todas estas condições inadequadas de trabalho e com todos estes ataques que recebemos.

Não importa o que aconteça, pois não somos movidos por tostões ou cédulas. Não queremos fazer medicina para ter ou comprar algo. A esmagadora maioria de nós é estudiosa e competente além de querer a proteção a todo custo daqueles acometidos pelas mais diversas enfermidades. Lutamos sozinhos e diariamente numa guerra com inimigos mais poderosos do que nós e mesmo assim não fraquejamos. O pagamento está na melhora, na lágrima e no agradecimento verdadeiro daqueles que perceberam nossa desgastante missão.

Você poderia pensar que ser médico é ruim depois de tudo que escrevi. Até compreendo o seu pensar, pois imagino que você não compreendia que nossa vida fosse assim, todavia ser médico é uma das coisas mais sublimes que se possa imaginar. Ser médico é manter a luta a despeito do medo e da incerteza de perder, ou seja, de não salvar ou não aliviar. Só o ato de estar ao lado daquele que padece representa uma vitória. Ser médico é receber o carinho e o coração de forma metafórica daqueles que vem pedir ajuda. Costumo dizer que, nós médicos, abrimos o nosso coração e nossa mente para receber toda a dor de quem está condoído por qualquer situação. Ser médico é chorar e sorrir com nossos pacientes. Ser médico é estar ao lado, mesmo que a solidão seja gigantesca. Ser médico é não perder a esperança e compreender que junto com os pacientes poderemos ultrapassar barreiras anteriormente julgadas como intransponíveis. Ser médico é não valorizar ataques ou desconfianças injustamente jogadas em nós. Ser médico é chegar a nossa casa e olhar para a nossa esposa e nossos filhos e ter a certeza de que fizemos o bem. Ser médico é não desistir por mais que nos julguem de forma completamente equivocada, tendenciosa, invejosa e maldosa. Ser médico é perder, ou seja, perceber que muitos pacientes acabam por não conseguir o melhor desfecho no tratamento. Isto não será problema, pois estivemos ali em todos os momentos. A morte e a doença não nos assustarão, pois ser médico não significa vencê-las em todas as circunstâncias. Ser médico é olhar nos olhos e dizer para o querido paciente “vá em paz e seja abençoado nesta nova jornada”. Portanto, sou suspeito para falar, pois ser médico é a melhor atividade de que se pode imaginar.

Imagino que se o médico medieval de Noah Gordon (Rob J. Cole) e São Lucas (“Lucano”) visitassem algum dos nossos locais de trabalho e percebessem nossas condições para exercer a medicina, eles lamentariam muito. Talvez até se preocupassem conosco. Contudo eles se orgulhariam, pois tentamos exercer a arte médica com todos estes percalços que não são poucos. Nós não fraquejaremos pelo indecente rótulo de “sal”. Enfim, tentaremos “temperar” a vida dos nossos pacientes não permitindo que os sofrimentos deles deixem suas vidas insossas.









Autor: Dr. Régis Eric Maia Barros
(Psiquiatra - contato:psiquiatria@regisbarros.com.br)

2 comentários:

  1. Gostaria de enviar um recado para Dr. Régis...

    Dr. Régis, seu depoimento foi profundamente claro, sensível, lúcido, legítimo, amoroso, acolhedor, verdadeiro e real!
    Fico feliz em conhecer um profissional da Medicina com tamanha qualidade humana. Digo humana, porque entendo que sua postura é digna mas não é sobrenatural. Todos nós podemos ser assim... simplesmente humano. Pena que nem todos são...
    Quanto às condições de trabalho que vocês médicos enfrentam, lamento profundamente e sou solidária ao sofrimento diário experimentado no exercício de sua função.
    Porém, não podemos esquecer que, independente da década de estudo e prática, sabemos que vários são os profissionais desta área e não somente desta, apresentam-se de forma descomprometida com a vida humana e com os efeitos devastadores do péssimo atendimento. Em parte, culpa do desmando governamental, mas em parte postura pessoal sem consistência profissional.
    Sendo assim, alegro-me com sua perspectiva de que muitos são os médicos(as) de qualidade que no sacro ofício acompanham as dores do mundo.
    Espero de todo coração que o seu ofício permaneça por longa data e que muitos tenham em ti, uma inspiração.
    Forte abraço de alguém que se comove com o simples fato de você, médico, existir!

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    1. Prezada Laura,

      Muito obrigado pelas colocações

      forte abraço

      Régis

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