A verdade fica ao longe
A recente publicação do Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2011 suscita uma série de questões quanto ao modo como a criminalidade tem sido enfrentada e abordada no Brasil. A campanha dita do desarmamento tem sido conduzida como se fosse ela a causa principal da redução da violência no País. Basta qualquer índice mostrar uma diminuição de homicídios, por exemplo, para que alguém já saia dizendo que isso se deve a uma campanha bem-sucedida e em curso de desarmamento.
Os fatos frequentemente nem contam, pois parece que tudo já está provado antes mesmo que os dados sejam apresentados. Não se trata de hipóteses de trabalho que deveriam ser verificadas, mas de reafirmações de uma crença de antemão válida. É como se dissessem: se a realidade não corresponde aos fatos, pior para a realidade. A fé segue verdadeira!
O que tem sido alardeado é que a campanha do desarmamento, levada a cabo nos últimos anos, está tendo êxito e isso se estaria traduzindo em diminuição da violência. Deixando, pelo momento, de lado a relação direta pretendida, vejamos os dados estatísticos apresentados pelo próprio Ministério da Justiça.
Tomemos uma série ampla, de dez anos, entre 2000 e 2010, para verificar se houve ou não, de fato, uma diminuição dos homicídios. Seria de esperar uma redução da criminalidade, considerando um desarmamento alardeado como bem-sucedido, realizado com amplas campanhas. Ora, nesses dez anos o número de homicídios cresceu de 45.360 para 49.932, ou seja, um aumento de 10,1%. Os dados estatísticos não comprovariam, portanto, que o recolhimento das armas de cidadãos - não criminosos e não bandidos, enfatizemos - se tenha traduzido na diminuição de homicídios. Um espírito aberto se perguntaria se não há outras causas em jogo, dentre as quais o desarmamento do cidadão de bem não seria a principal.
Se tomarmos as 27 unidades da Federação, 20 apresentaram aumento de crimes na década e apenas 7, redução. Ou seja, também no cômputo por Estados houve aumento da criminalidade, em que pese, reiteremos, o desarmamento dos cidadãos de bem, que procuram apenas a autodefesa, num espírito de livre escolha. Mais precisamente, poderíamos acrescentar que os bandidos não foram desarmados. Eles não se apresentam voluntariamente para entregar suas armas!
Ademais, acrescentemos que o comércio civil de armas, hoje, no Brasil é praticamente inexistente. As exigências para a compra são tão grandes e dispendiosas, além de extremamente demoradas, que esse mercado desapareceu. Bandidos não compram armas em lojas especializadas. Pior ainda, os números mostram que eles continuam armados e, muitas vezes, com armamentos pesados de restrito uso militar.
Entre os números apresentados de redução da violência, destacam-se os Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro. Podemos, sensatamente, nos perguntar se foi o "desarmamento" que produziu essa diminuição. Outras hipóteses poderiam ser aventadas, dentro de um espírito científico, não fechado por uma crença preestabelecida.
No Fórum de Segurança Pública consta uma carta assinada pela Secretaria da Segurança Pública de São Paulo contestando os dados do Anuário indicando uma diminuição, nesse Estado, dos recursos destinados ao setor. Diz textualmente a carta: "O aumento dos investimentos do Governo do Estado na área de segurança é uma das principais causas da redução dos níveis de criminalidade e violência em São Paulo. Desde 1999, o Estado reduziu em 73% o número de homicídios dolosos". Acrescenta ainda a carta que em 2005 o montante destinado à segurança foi de R$ 7,01 bilhões, tendo subido em 2010 para R$ 10,78 bilhões.
Observe-se, também, que a política de segurança pública no Estado de São Paulo tem sido de combate direto à criminalidade, enfrentamento com bandidos se necessário, num espírito de tolerância zero. Os serviços de inteligência tiveram uma melhora significativa. Em 2009, 60 mil pistolas foram adquiridas, assim como 6 helicópteros. Um espírito isento poderia apresentar esses dados como razões da diminuição da violência.
No caso do Rio de Janeiro, a queda apresentada pode ser atribuída, em boa medida, a uma nova política de segurança pública, com combate direto à criminalidade via ocupação de favelas e estabelecimento de UPPs, beneficiando um enorme grupo de comunidades. A tolerância com criminalidade manifestamente diminuiu, o que se teria traduzido em redução dos homicídios.
Poderíamos listar outras causas para o aumento da criminalidade, como a epidemia do crack e o narcotráfico em geral, que têm tido um crescimento substantivo no País. E o narcotráfico, manifestamente, não pode ser combatido com o desarmamento da população civil. A confusão seria total!
O nó da questão reside na formação da opinião pública. Os formadores de opinião pró-desarmamento dos cidadãos de bem e os agentes públicos que lhes dão respaldo tornaram a sua campanha uma questão de ativismo político, recusando quaisquer opiniões ponderadas que contrariem suas crenças. Pesquisas são dirigidas por orientações ideológicas e vendidas à opinião pública como o resultado de todo um esforço científico. Mas antes de qualquer conclusão científica se estabelece um consenso do ponto de vista da opinião pública, toda posição contrária vindo a ser considerada uma espécie de anátema, coisa de "homens da bala".
O problema que se coloca consiste em levantar esse véu público, o da ideologia, de tal maneira que causas e efeitos possam ser estabelecidos, e não quaisquer nexos associativos sem fundamento. Com orientações ideológicas não teremos certamente uma redução da criminalidade. Hipóteses devem ser seriamente testadas. Se a crença toma o seu lugar, os prejuízos são evidentes. A verdade fica ao longe.
Autor: Denis Lerrer Rosenfield.
(professor de Fiolosofia na UFRGS)
Publicado no jornal O Globo.
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