Considerações psicodinâmicas sobre violência nas escolas
Nos dias de hoje, infelizmente, nem nossas escolas, nem nossas crianças e jovens estão a salvo da violência que tem se tornado cada vez mais corriqueira em nosso mundo.
Nos tempos atuais a violência tem se tornado cada vez mais frequente; nas pessoas, nas cidades, no planeta. Em qualquer espaço, a violência tem se feito presente. Vemos, com perplexidade, que mesmo os jovens e as crianças têm se tornado reféns da violência. Nas escolas, são comuns as situações de violência denominadas de bullying: crianças e jovens que são discriminados e se tornam vitimas de atos de humilhações e violência provocados por outras crianças e jovens que deveriam ser seus "colegas"; pior ainda, muitas vezes são os próprios professores dessas crianças e jovens que os discriminam e humilham.
Sempre foi comum entre jovens "zoar com os colegas" como se costumava dizer. Mas há, sim, uma grande diferença: o acréscimo que hoje se faz notar com relação à intolerância com os diferentes e a necessidade de humilhar aquele que, com sua diferença, ousa trazer a inquietação e o desconforto. É importante discriminar o bullying das brincadeiras entre crianças e jovens. O bullying é um jogo de poder. Uma forma de exercer poder humilhando o outro, que nada tem de brincadeira; ao contrário é muito sério em sua intenção, em sua expressão e em suas consequências. Um jogo de poder que tem como finalidade degradar o outro, colocando-o num lugar de sofrida inferioridade e vulnerabilidade e, através dessa ação, garantir a superioridade, o poder e a força de quem o pratica.
Citando as palavras de Sandra Regina da Luz Inácio:
O objetivo da humilhação tem como principal característica a destruição moral daquele que a sofre. Se existe uma situação onde a dor emocional do homem é percebida com facilidade é através da humilhação, pois nela o indivíduo se vê exposto e a vergonha toma conta de seu ser.
Todos nós possuímos um lado da personalidade sobre o qual não nos atrevemos a falar ou expor. É onde encontramos aquelas qualidades que julgamos negativas, indesejadas. Esforçamo-nos muito, ao longo da vida, para escondê-las, mas na humilhação serão justamente aspectos deste lado sombrio que ficarão evidenciados.
Quando a humilhação é constante, a pessoa que a sofre perde a identidade porque ela mesma e os demais a reconhecerão somente através daquela característica negativa que está sendo focada, como se a pessoa fosse somente aquele lado negativo. A parte se incumbirá de determinar o todo.
O respeito e amor próprio ficam totalmente prejudicados e a própria pessoa se colocará em posição de humildade, carregando um forte sentimento de culpa, por possuir aquela qualidade julgada negativa.
A humilhação está estreitamente vinculada ao sentimento de inferioridade existente em todo ser humano. Se um indivíduo se sente humilhado é porque alguém, através de algum ato o fez sentir-se inferior. (INÁCIO, 2008, p. 1 - 2)
A intolerância com o outro, que com sua diferença ousa desafiar o poder, é a fonte do bullying e da necessidade de humilhar o outro. A intolerância e os preconceitos com o diferente não é nova. È muito difícil aceitar ou mesmo tolerar aqueles que são diferentes de nós ou de nossos padrões, mesmo que esses sejam fundamentados em fantasias. Os diferentes nos incomodam, pois nos obrigam a nos depararmos com facetas que não queremos ou podemos aceitar em nós. A similaridade é confortável, pois nada aí sobressai, nada destoa produzindo desequilíbrio. O desequilíbrio faz acordar em nós os fantasmas adormecidos em nossa inconsciência. E fantasmas perseguem, assustam e ameaçam, impelindo-nos a novamente adormecê-los, através da negação. Fantasmas fazem ressurgir afetos negativos que nos convidam a uma reação; um reagir que tem por finalidade apagar a visão daquela desigualdade que não pode ser aceita, mesmo que para apagá-la tenha-se que destruir aquele que a tem.
O bullying é uma forma de exercer poder sobre o outro o colocando numa posição de inferioridade. É uma maneira de garantir àquele que o exerce, o sentimento de poder e superioridade e de delegar ao outros aspectos dignos de serem execrados. Quando não é possível enfrentar o inimigo em nós, o projetamos no outro; essa é uma forma de diminuir a angústia causada pelo próprio sentimento de inferioridade. Colocar o outro em desvantagem é, ao mesmo tempo, colocar-se em vantagem.
Num mundo em que vantagem, superioridade e poder são altamente valorizados, colocar o outro na situação de inferioridade faz com que as pessoas se sintam importantes, poderosas, admiradas e invejadas. Há pessoas que fazem do ato de humilhar um hábito, pois é através desta condição que conseguem diminuir a angústia causada pelo próprio sentimento de inferioridade. Quando não conseguimos ver o inimigo dentro de nós, o projetamos fora e guerreamos com ele. (Ibidem, p. 2).
A intolerância com o outro é a intolerância consigo mesmo, com os próprios conteúdos inconscientes rejeitados e negados. Aceitar o outro começa pelo autoconhecimento e pela aceitação de nossos próprios aspectos negativos. A capacidade de aceitar o outro sem preconceitos repousa na aceitação das diferentes dimensões de si mesmo.
Cotardo Calligaris falando sobre as dificuldades em aceitar o que o outro tem de diferente de nós e até mesmo sobre a intolerância com as nossas próprias diferenças, afirma: "Diferentemente do que a gente pensa, as pessoas consultam um psicanalista porque elas querem continuar sendo iguais, porque algo de diferente está ameaçando aquilo que ela era acostumada a ser". (CALLIGARIS, 2011, p.1)
O bullying é um ato de violência.
Consideramos violência como um ato intencional executado por alguém que tem o propósito de ferir o outro, seja fisicamente, psiquicamente, ou mesmo moralmente.
Violência é diferente de agressão.
Agressão é um ato de intenção aberta; isso pode ser entendido como uma ação às claras. Do ponto de vista de quem sofre a ação agressiva, existem sinais e/ou mensagens de que o ato agressivo poderá ou irá ocorrer.
Essa possibilidade de saber antecipado é de importância primordial para a mente humana, pois a angústia gerada impele o indivíduo a ações defensivas que vão desde tentativas de evitação e fuga até a mobilização de recursos defensivos do ego.
Porém, se uma pessoa, conhecida ou não, sem indícios e possibilidade de previsão, ataca como, por exemplo, nas situações de bullying, quem sofre essa ação não terá nenhum recurso físico ou psíquico, para desenvolver defesas.
Ações de violência são categorizadas como um ato de intenção velada ou oculta. Aquele que sofre um ato de violência não tem sinais que o ajudem a tentar se preparar. A violência é uma ação inesperada e abrupta que, não podendo ser prevenida, e muito menos precavida, atinge o(s) outro(s) com grande intensidade e sofrimento.
O fator inesperado e abrupto da violência caracteriza o que chamamos de evento disruptivo, isto é, um evento de intensa magnitude que, aliada ao despreparo consequente da imprevisibilidade, atinge o individuo "como um raio". O psiquismo é afetado de forma indireta, porém intensamente, por um fator patogênico que se encontra no ambiente e, de repente, a sua vida muda.
Em saúde mental, muitos confundem as situações de agressão com as de violência.
Dr. Moty Benyakar (2005) afirma que essa confusão seria semelhante a tratar uma infecção sem diferenciar se essa é viral ou bacteriana e, consequentemente, não desenvolver o tratamento adequado a cada uma dessas etiologias.
A psicodinâmica entende que essas diferenças são de grande importância para considerar as consequências e os adoecimentos que podem, eventualmente, causar.
O impacto que as situações de violência imprevisíveis, bruscas e de grande magnitude, provocam no psiquismo, certamente não pode ser o mesmo que o impacto das situações de agressão que a pessoa pode antecipar e tentar se defender.
Nas situações que podem ser antecipadas, o ego é acionado para buscar possibilidades de prevenção e/ou mobilizar mecanismos de defesa. Como a intensidade do sofrimento depende da relação sistêmica entre a magnitude do evento e a capacidade e força do ego que a sofre, pode-se entender que, quanto mais for possível prever e acionar defesas, menos graves serão os eventuais adoecimentos psíquicos decorrentes dos danos sofridos.
Nessas situações, o psiquismo se desestabilizará, porém permanecerá, em parte, ligado á realidade, pois manterá algumas defesas organizadas.
Frente à AGRESSÃO nossa tendência será de desenvolvermos Ansiedade e Estresse.
Outra pode ser a sequência nos casos em que um evento violento ocorre sem que existam possibilidades de preparo e defesa. Nessas situações o psiquismo, desprevenido, é literalmente invadido e tomado pela magnitude da ação e, ao menos num primeiro momento, pouco mais lhe resta, a não ser tentar suportar a angústia e a dor, e tentar encontrar um significado que lhe permita suportá-las.
Quando vivemos situações de violência, o psiquismo tende a se desorganizar, temporária ou definitivamente.
Usando uma metáfora citada, em aula, pela colega de psicodinâmica Erane Paladino, a mente que sofre uma violência pode se sentir como um ralo que não consegue escoar a intensidade de água pela qual é assolado, não apenas demandando uma força de trabalho muito acima de sua capacidade, como fatalmente causando-lhe um entupimento que irá gerar apodrecimento, fermentação e sofrimento.
A experiência da agressão gera o desenvolvimento de Angústia e Patologias Disruptivas.
Para citar algumas das consequências do bullying para quem o sofre, citamos novamente Sandra Regina da Luz Inácio:
As consequências para as "vítimas" desse fenômeno são graves e abrangentes, promovendo no âmbito escolar o desinteresse pela escola, o déficit de concentração e aprendizagem, a queda do rendimento, o absentismo e a evasão escolar. No âmbito da saúde física e emocional, a baixa na resistência imunológica e na auto-estima, o stress, os sintomas psicossomáticos, transtornos psicológicos, a depressão e o suicídio.
Para os "agressores", ocorre o distanciamento e a falta de adaptação aos objetivos escolares, a supervalorização da violência como forma de obtenção de poder, o desenvolvimento de habilidades para futuras condutas delituosas, além da projeção de condutas violentas na vida adulta. Para os "espectadores", que é a maioria dos alunos, estes podem sentir insegurança, ansiedade, medo e estresse, comprometendo o seu processo socioeducacional.
Dependendo do grau de sofrimento vivido pela criança, ela poderá sentir-se ancorada a construções inconscientes de pensamentos de vingança e de suicídio, ou manifestar determinados tipos de comportamentos agressivos ou violentos, prejudiciais a si mesma e à sociedade, isto se não houver intervenção diagnóstica, preventiva e psicoterápica, além de esforços interdisciplinares conjugados, por toda a comunidade escolar. (Ibidem, p. 4)
Entretanto, há que se considerar que o bullying não costuma se restringir apenas a uma ação de violência. Ao contrário, o bullying é um processo, pois aquele que o pratica aprende que nele reside sua força e que sua prática constante reforça sua imagem de superpoderoso e onipotente. Assim, ao encontrar um outro com pouca força de reação, que se submete passivamente aos seus ataques, descobre o "parceiro" ideal para continuar a jogar esse jogo. O outro passa a ser, então, escravo de um jogo constante que o "agressor" tem que repetir não apenas para obter dele a imagem desejada como também para apaziguar suas próprias angústias. Isso gera uma importante consequência para aquele que é alvo do bullying. Sua reincidência permite ao seu ego concluir que aquela situação deve se repetir e que o "agressor" costuma ser sempre o mesmo, ou alguém de seu grupo. Essas descobertas permitem o desenvolvimento de prevenções e de recursos que possam ajudá-lo a "minimizar" o sofrimento decorrente dos ataques.
Isso significa outra consequência para as nossas formulações sobre o bullying. Se a primeira vivência de bullying pode ser configurada como uma experiência que pode levar ao desenvolvimento de angústias depressivas e de patologias disruptivas, sua repetição permite, contudo, que essa vivência seja, pela introdução da força e ação dos recursos de defesa egóicos, transformada em experiências de agressão, que geralmente desencadeiam quadros de estresse em que predominam a emoção de ansiedade.
Maiores recursos de prevenção e defesa, entretanto, não significam menor sofrimento. Aquele que é objeto de bullying poderá ser prisioneiro de uma visão de si mesmo bastante prejudicada, pois ser alvo de bullying resulta numa autoimagem de incapacidade e impotência, acrescida por sentimentos de desvalorização e abandono.
Mas, nem sempre esse será o final. Não são muitos os que conseguem, como uma fênix, renascer, mais fortes ainda, das cinzas de uma imagem de si mesmo tão destruída. Porém, é possível, e felizmente algumas crianças e jovens são capazes de superar e elaborar essas ações de violência e agressão, principalmente se acompanhados por alguém que, como um "tutor", os ajude a encontrar e trilhar esse caminho do "renascimento". Quando existem força e capacidade de ego o individuo poderá, após esse primeiro angustiante momento, impedir que essa sequência chegue a um final mais drástico. A condição de representar o acontecido e atribuir-lhe um significado acalma a angústia e mobiliza os recursos defensivos, prognosticando um desenvolvimento que, embora seja alcançado através de muita dor e sofrimento, pode não significar efeitos mais danosos ao psiquismo.
Estes são os elementos que definem a "condição resiliente".
Autora: Ively Helena G. Taralli.
(Psicóloga e psicanalista. Professora do Curso de Intervenções em Situações Limite Desorganizadoras - Instituto Sedes Sapientiae. Diretora do "Instituto de Estudos Psicodinâmicos - IEP". Membro fundador e gestor do "Centro Brasileiro de Estudo, Pesquisa e Intervenção em Desastres e Catástrofes Naturais e Antropogênicos")
Publicado na Revista Construção Psicopedagógica.
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