Um mês após a ocupação por forças de segurança, a Rocinha, na zona sul do Rio, passa por mudanças na dinâmica de poder dentro da comunidade depois da saída de cena do chefe do tráfico, Nem, da entrada da polícia e da prisão de um dos principais líderes comunitários da favela.
A prisão, por suspeita de associação ao tráfico, de William de Oliveira, ex-presidente da associação de moradores local, levantou questionamentos sobre a proximidade de lideranças comunitárias com o tráfico nos anos anteriores à ocupação policial.
William da Rocinha, como é conhecido, foi preso após a divulgação de um vídeo, sem som, em que é mostrado ao lado do ex-chefe do tráfico local, Antônio Bonfim Lopes, o Nem, supostamente negociando a venda de fuzis para a organização criminosa que dominava o morro.
Historicamente, as favelas são representadas pelas associações de moradores (AMAs). Mas acredita-se que o domínio que o tráfico exercia na Rocinha também podia influenciar ou direcionar a escolha de líderes comunitários.
Com o processo de implantação de uma UPP, iniciado em 13 de novembro, a Rocinha pode mudar seus mecanismos de organização interna dos moradores.
"Vemos que a percepção média dos moradores é um tanto negativa em relação às AMAs, sobretudo por questões de legitimidade", opina o cientista político André Rodrigues, pesquisador associado do Instituto de Estudos da Religião (ISER), que coordena uma pesquisa sobre o impacto das UPPs na dinâmica das associações de moradores.
"Há um certo ceticismo em relação a elas, às vezes um distanciamento por falta de identidade", acrescenta Rodrigues.
O pesquisador diz que os moradores agora tendem a procurar as UPPs para tratar de vários assuntos que antes eram levados às AMAs, porque agora as UPPs são a instância mais próxima do Estado à que eles têm acesso.
Participação mais ativa
Ocimar Santos, presidente da ONG Rocinha.org, um portal de notícias internas da comunidade, avalia que agora os moradores vão participar mais ativamente da vida política local.
"(Antes) algumas pessoas não se sentiam muito à vontade para isso. Agora a comunidade está mais desafogada, mais livre para agir, mesmo com essas novas regras que chegaram (com a presença da polícia)", diz Santos.
"Eu acredito que agora a Rocinha está caminhando a passos largos para se transformar em um bairro de verdade. As pessoas que tinham algum tipo de receio vão procurar ter mais voz."
André Rodrigues diz que a acusação feita a William da Rocinha é um caso individual, que precisa ser investigado, mas a suspeita não deve ser generalizada para outras lideranças comunitárias.
"A questão é delicada", afirma. "Se for tratada de forma descuidada, podemos incorrer em equívocos que podem resultar em visões criminalizantes das associações de moradores."
Convivência x conivência
O cientista político ressalta que, nas últimas décadas, as AMAs se consolidaram como o principal interlocutor entre o poder público e os moradores de favelas, sendo os grupos que conseguiam dar voz a demandas cotidianas de favelas perante o poder público.
"Durante muito tempo, elas foram os únicos canais a partir dos quais as demandas básicas da vida nas favelas tiveram algum respaldo, como o acesso a direitos e a serviços básicos."
Com o cenário de domínio do tráfico nas comunidades, Rodrigues afirma que agora não deve ser tratado como tabu o fato de as AMAs terem tido contato com os traficantes antes da entrada das UPPs.
No contexto anterior, diz Rodrigues, qualquer grupo que queria atuar nas favelas - fossem instâncias do poder público, como escolas ou centros de assistência social - precisavam estabelecer um contato mínimo com o tráfico, assim como pesquisadores ou outros grupos que quisessem atuar na favela.
"É óbvio que, para consolidar uma instância de representação em um contexto em que o crime comanda a vida pública, não é possível levar a cabo um trabalho estável sem um mínimo de transigência com o tráfico de drogas", afirma.
Essa relação pode variar muito de uma favela para outra e ser mais estreito ou promíscuo em algumas, diz Rodrigues, mas ele avalia que uma frase que ouviu repetidas vezes para descrever a interação descreve a relação mais comum: "Convivência é diferente de conivência", cita.
Com a implantação das UPPs, diz Rodrigues, há uma oportunidade de fortalecimento das associações de moradores e de estabilização de sua representatividade, mas desde que se saiba aproveitá-la.
"Se o Estado virar as costas para esse interlocutor histórico, agora que está conseguindo tocar o barco, e passar por cima das associações, abrirá mão da oportunidade de fortalecer essas parcerias", diz o pesquisador.
Eleição controversa
Com 70 mil moradores estimados pelo Censo de 2000 e mais de 180 mil calculados pela principal associação local (a UPMMR - União Pró-Melhoramentos dos Moradores da Rocinha), a Rocinha fica na zona sul do Rio, no bairro de São Conrado, entre a Lagoa e a Barra da Tijuca.
A comunidade escolheu o último representante da UPMMR no dia 30 de outubro, em eleição realizada dias antes da entrada da UPP. O pleito reelegeu para a presidência Leonardo Lima, há dois anos no cargo e que inicia agora mandato de mais quatro anos.
Lima recebeu quase 4 mil votos, o triplo do que a chapa de William da Rocinha. Na época, William afirmou que Lima teve apoio do tráfico para se reeleger.
Em entrevista por telefone à BBC Brasil, o novo presidente se recusou a falar sobre qualquer assunto que não fosse o trabalho social da associação e disse que é muito cedo para avaliar os efeitos da entrada da UPP.
"A associação tem trabalhado muito e agora acho que vai trabalhar muito mais. Se vierem mesmo políticas públicas, a gente quer estar acompanhando tudo para cobrar e ter a participação da comunidade", afirmou.
Reportagem publicada no portal BBC Brasil.
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