Crack: uma realidade dolorosa
A sociedade padece e agoniza diante da situação dos usuários de crack e das “cracolândias”. Em todos os confins do território brasileiro existem usuários desta droga. Embora o cidadão pobre, sem oportunidades e que fica à mercê da sociedade continue sendo o mais acometido, pessoas das classes sociais mais abastadas também passaram a configurar como usuários desta substância. Conseqüentemente, o caos, numa realidade já caótica, vem se agravando. Eis que surge um questionamento: como reagir frente a esta realidade?
Os programas governamentais sucumbem na necessidade de combater o crack. Tais programas e projetos devem extrapolar a dimensão da saúde, visto que, sem instrumentos sociais, educacionais e culturais nenhum resultado será alcançado. Por mais que o componente de saúde pública seja primordial, é obtuso e equivocado achar que a problemática do crack e que todas as suas conseqüências serão combatidas, apenas, com discussões pautadas em leitos psiquiátricos ou clínicas de tratamento.O dependente de crack e suas famílias necessitarão, além de espaços de tratamentos dignos e adequados, de uma revolução social.
Este é o grande engodo da problemática que poderia ser questionada de forma reducionista da seguinte forma: o Estado Brasileiro está preparado e se mostra capaz para esta revolução?
Confesso que é difícil responder se em algum momento ele esteve ou se ele está ou se ele estará pronto para revolucionar desta forma conforme analisado acima. O dependente de crack é o mesmo fora e dentro do espaço de tratamento seja ele comunitário, hospitalar ou misto. Portanto, a vida dele, em sua quase totalidade, acontecerá nas ruas, nas relações familiares e sociais, no trabalho e no cotidiano. Eis o porquê da necessidade de se pensar além dos espaços de tratamento sejam eles públicos ou privados. A propósito estes últimos crescem gradativamente evidenciando a falência do modelo público de tratamento e a lucratividade neste terreno fértil e não semeado pelo Estado.
Após as propostas de Reforma da Assistência à Saúde Mental, ocorridas nas décadas de 1980 e 1990 e confirmadas nas décadas seguintes, ocorreu uma redução maciça dos leitos hospitalares psiquiátricos. Paralelamente, havia a proposta de criar uma rede comunitária substitutiva capaz de assumir, em todos os aspectos terapêuticos, o paciente psiquiátrico. Nesta transição reformadora, alguns pontos críticos merecem destaques:
1. O descompasso na velocidade de redução dos leitos hospitalares e de criação dos serviços substitutivos comunitários;
2. A falta de análise longitudinal do principal substitutivo da Reforma “Psiquiátrica” Brasileira (CAPS – Centro de Atenção Psicossocial) no que concerne aos seus indicadores de impacto (eficiência, eficácia, efetividade, etc);
3. O investimento deficitário para o setor hospitalar gerando uma falta de assistência àqueles que necessitam deste modelo de tratamento;
4. O número limitado de unidades psiquiátricas em hospital geral capazes de fornecer um tratamento psiquiátrico mais integral e integrado com as outras áreas médicas;
5. O financiamento precário para saúde mental associado a um direcionamento majoritário de recursos aos Centros de Atenção Psicossociais.
Há uma necessidade de avaliação crítica sobre estes pontos e isto de forma alguma é significado de que ocorrerá uma defesa a modelos asilares ou manicomiais. Pelo contrário, os asilos não necessariamente precisam de muros hospitalares, visto que, eles também estão ligados a forma ideológica do pensar e nascem com o abandono. Desse modo, um consultório pode ser manicomial, um CAPS pode ser manicomial, uma unidade de internação pode ser manicomial e embora os manicômios tenham sido combatidos no período pós-reformador, atualmente, temos manicômios maiores do que os de outrora, por exemplo: os presídios brasileiros.
Se o gargalo já era estreito para ter um tratamento psiquiátrico digno antes do aumento da preocupação social com o crack e com as “cracolândias”, imaginem agora. Por isto, eu volto a ressaltar: o que era o caos ficou mais caótico e neste terremoto sanitário e social surgirão aproveitadores e falsos líderes capazes de lucrar com tudo isto sejam com ganhos primários ou secundários. Na verdade, isto já é um filme repetido basta lembrar as guerras, as situações de conflitos e a seca nordestina.
Em todo processo saúde-doença, independente da patologia, é necessário compreender, aprofundar o entendimento e investir em atividades preventivas. Estas propostas mostram-se eficazes e, ao final, menos onerosas, portanto mais eficientes. Em relação ao crack, discute-se sobre “tratar” e “internar” como se a simples colocação do indivíduo no regime hospitalar, por mais que indicada sob o julgamento médico, resolvesse a problemática. A discussão técnica de muitas entidades representativas de classes e de categorias profissionais bate, recorrentemente, nesta tecla. Cansamos de escutar o questionamento – “onde vamos internar”? No entanto, não escutamos o seguinte questionar: como vamos fazer para combater esta ascensão de usuários de crack e de “cracolândias”? Enfim, numa linguagem mais coloquial, seria melhor e mais lógico “enxugar o gelo ou impedir que ele cresça”?
A voz daqueles que trabalham com saúde mental e que poderiam pressionar as instâncias governamentais é uma voz fraca e sem reverberação. No Brasil, a forma ideologicamente apaixonada que a Reforma da Assistência à Saúde Mental foi conduzida deixou um triste legado – a dicotomia entre as categorias profissionais. De um lado “os defensores da reforma” e de outro “os opositores da reforma”. Às vezes, esta análise é tão primitiva e tão apaixonada que você pode ser colocado em um lado por uma simples opinião que, em tese, não teve como objetivo defender nem lá, nem cá. Conclusão: a voz é fragmentada e, muitas vezes, até contraditória. O resultado é um meio de cultura apropriado para a construção de Políticas de Saúde Pública que não darão certo. E nós, protagonistas do processo, ficamos parecidos com “baratas tontas” trombando uns nos outros sem conseguir mudar absolutamente nada.
Talvez, tudo isto justifique esta importante problemática. Portanto, a questão não é somente a capacidade expansiva de consumo e de dependência que o crack tem. Ele se encaixou como dedo em luva nesta realidade caracterizada por uma:
• Atenção à saúde mental capenga;
• Usuários com situação social, educacional e cultural agonizante;
• Disputa entre categorias profissionais com ausência de voz conjunta e coletiva;
• Ausência de Políticas de Saúde Mental com medição de indicadores de impacto das suas propostas;
• Surgimento de aproveitadores e falsos líderes que, ao invés de inverter e resolver a demanda, acaba por perpetuá-la.
O crack é uma realidade nua e crua que está explícita aos olhos de todos. Não adiantará se esconder, pois, de um jeito ou de outro, ele baterá na nossa porta. Por fim, é preferível analisarmos estes pontos de estrangulamentos a fim de construirmos exércitos e propostas de vitória, pois esta postura é mais digna e enriquecedora do que escrever e valorizar derrotas. As categorias profissionais da saúde mental e a sociedade civil precisarão ajustar o discurso para que, de maneira mais efetiva e menos dicotomizada e messiânica, melhores resultados sejam alcançados.
Autor:
Dr. Régis Eric Maia Barros
(Psiquiatra, Mestre e Doutor em Saúde Mental pela FMRP – USP)
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